domingo, 21 de outubro de 2012

Ernest Hemingway - Por quem os sinos dobram




Por quem os sinos dobram/Ernest Hemingway; tradução de Luís Peazê. - 7a ed. - Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2009.

Iniciei a leitura do livro Por quem os sinos dobram e confesso que a linda narrativa deslumbrou já no primeiro capítulo. Especialmente pela profundidade com que o autor desnuda os personagens. São relatos fiéis dos conflitos humanos mesmo em meio ao cumprimento fiel de seus papéis, seja um oficial de guerra ou um cidadão civil quando o quadro de atuação é a guerra e seus embates. 

A narrativa transcorre com Robert Jordan e sua missão de exterminar uma ponte sobre um rio em campo inimigo. O autor constrói os ambientes com extrema fidelidade, não somente pela própria experiência em vida quando teve a oportunidade de ser voluntário na primeira guerra mundial. É típico do autor a construção do ambiente indo além dos detalhes físicos mas perpassando o emocional, o psicológico do meio em que é construída a narrativa (fácil entender quem já leu O velho e o Mar).

Um livro inesquecível.

Hemingway, Ernest, 1899-1961, jornalista, novelista e contista norte-americano, foi o representante não apenas do seu país, mas também do nosso tempo, com cuja magnífica obra granjeou o Prêmio Nobel de 1954. Participou da Primeira Guerra Mundial como voluntário, com apenas 19 anos, junto aos exércitos francês e italiano, o que lhe permitiu melhor avaliar a alegria de viver e a exaltação da luta, que é a manifestação da própria vida, além de toda a sordidez da guerra, carnificina anônima, anárquica, insensata. Mais tarde, foi correspondente na Europa de jornais da América. A sua condição de combatente e jornalista proporcionou-lhe elementos preciosos para vários dos seus trabalhos literários, entre os quais sobressaem Adeus às Armas, pungente retrato de conflitos humanos gerados pela Primeira Guerra Mundial, e Por Quem os Sinos Dobram, extraordinária e comovente história cujo pano de fundo é a guerra civil espanhola.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Ana Cristina Cruz César

Ana Cristina César
"Acho que existe sim um tipo de sensibilidade feminina, que é uma sensibilidade meio caótica, é uma sensibilidade mais sutil, é mais desorganizada. Ela é uma sensibilidade talvez meio histérica. A mulher é histérica por tradição."


A vidente se recolhe

Ardo de curiosidade pelo futuro,
me diz a moça mais oca da sala. Está escrito?
Isso me interessa, seu suspiro náutico,
porque não era ardor: a doçura da tolice singra a festa.
Adiante encontro um moço que me tolhe o passo e diz,
deixe-me levar, a dança... Ainda não.
Passo. Ainda não. Sigo o fio espiral do telefone
em curvas que roçam no batente várias portas.
Disco. Venha me buscar às tantas. Chegando
o fusca no portão, estou ali debaixo da garoa.
Vou guiar. Desço sem rilhar pneu.
Te levo para a sombra de árvore rendada na luz branca.
Manchas de umidade sob o parapeito. Ar de horto.
Veja a vista da cidade atrás da sombra.
Céu cortado por metade de holofotes em circulação.
Pó de maresia ao longe. Lagoa e jóquei, istmo, hotéis.
Daqui a cidade é brilho para adivinhar e rumoreja.
Também dou meu ombro de marmota recolhendo.

A mãe de Ana Cristina César era professora de literatura; o pai intelectual respeitado nos círculos políticos e religiosos, líder da Confederação Evangélica do Brasil, diretor da revista Paz e Terra e um dos criadores do ISER - Instituto Superior de Estudos Religiosos. Ana Cristina cresceu ouvindo os poemas e cânticos de sua igreja. Espécie de menina-prodígio, antes mesmo de aprender a escrever, já ditava seus poemas para a mãe.

O golpe militar de 64 transformou a vida da família da poetisa. A pressão dos pais de alunos contra os diretores e professores de esquerda do Colégio Bennett fez com que ela fosse transferida para outra escola. Nem bem concluiu o ginásio, Ana Cristina já participava de protestos estudantis. Seu namorado levou um tiro na perna, em manifestação diante da embaixada americana. O apartamento da família, na rua Toneleros, seria invadido algumas vezes pelas forças de repressão, em busca de seu pai.

Ana Cristina viajou para a Inglaterra e foi viver na casa de uma família protestante. Estudou seis meses numa escola para meninas, conheceu Londres e viajou pela Europa, o que seria um ponto de mutação em sua v ida, como "perder a infância". De volta ao Brasil, em 1971, estudou Letras na PUC, onde se formou quatro anos depois. Armando Freitas Filho viu em Ana Cristina César as características da poesia marginal carioca de sua geração: "O tom coloquial, longe das dicções solenes, sisudas e premeditadas."

Em 1979, Ana Cristina voltou à Inglaterra, para fazer mestrado em tradução. Ao retornar para o Rio de Janeiro, foi morar sozinha na Gávea e iniciou um ritmo frenético de trabalho, fazendo traduções e trabalhando para a Rede Globo como leitora e avaliadora de novelas. Mas nada preenchia o grande vazio que sentia na época. Ítalo Mariconi, um de seus amigos mais próximos, nota que, em 1983, o quadro de depressão se agravara: "Nosso jantar, no restaurante Real, na praia do Leme, foi uma choradeira mútua. Não tive presença de espírito para notar que o papo dela de suicídio era à vera." Em fins de setembro, Ana tentou se matar. Foi internada e, uma semana depois de sair da clínica, na casa dos pais, em Copacabana, atirou-se de uma janela do sétimo andar. Caio Fernando Abreu comentou o comportamento de Ana Cristina César poucos dias antes, na festa de aniversário dele: "Lenta, concentrada. Ana não dizia nada, apenas tocava, um por um, todos os objetos do meu quarto. E me olhava. Profunda, atentíssima, remota. Parecia uma despedida."

"Nela o coloquial vinha emmpacotado numa outra economia do verso, numa outra dinâmica das relações de som e sentido entre as frases poe´ticas, deixando transparecer um tipo de foramção literária rara no Brasil."

(Ítalo Moriconi)


Obras da autora
POESIA: Cenas de abril, 1979; Luvas de pelica, 1980; A teus pés, 1982.
OUTRAS: Literatura completa (cartas), 1979; Escritos no Rio (texto; jornalísticos), 1993; Correspondência incompleta (cartas), 1999.

(Estou postagem está em rascunho a meses e não recordo mesmo o motivo de não tê-la liberado - talvez sua incompletude para uma autora tão vasta - uma postagem para retornar e retornar e alimentar o tópico sempre).

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Impressionismo: Paris e a Modernidade


Edouard Manet (1832-1883)
O pífano
1866
Óleo sobre tela
Alt. 160; Larg. 97 cm
Paris, Museu de Orsay
Doação do Conde Isaac de Camondo, 1911
© RMN (Musée d'Orsay) / Hervé Lewandowski

"São Paulo, Rio de Janeiro, Madri


Enquanto a velha Paris se apaga sob a influência do barão Haussmann, os pintores Jongkind e Lépine, Manet e Degas, Monet e Renoir, Pissarro e Gauguin, apaixonam-se pela cidade e pela sua vida frenética. Novos temas surgem para os artistas, com boulevards, ruas e pontes animados por um movimento incessante, jardins públicos, vibrantes mercados cobertos e a céu aberto, retraçados sob o céu cinza, bem como grandes lojas e vitrines, iluminadas a gás ou eletricidade, estações de trem, cafés, teatros e circos, corridas, sem falar dos bailes e noitadas mundanas...

Através destes lugares, os artistas pintam igualmente todas as camadas da sociedade: austeras famílias burguesas na obra de Fantin-Latour, burguesia mais elegante e frequentadora dos lugares da moda, moças da fina sociedade tocando piano em Renoir, prostitutas que rodam a bolsinha e sobre as quais artistas como Degas, Toulouse-Lautrec ou Steinlen lançam um olhar livre de qualquer
julgamento moral e até empático, como em Toulouse-Lautrec.

Entretanto, a atração pela natureza e o desejo de fugir da cidade também se manifestam de modo imperativo... São os mesmos artistas que se voltam para os temas mais “naturais” das cercanias de Paris (Monet, Bazile, Renoir, Sisley para Fontainebleau, Monet para Argenteuil, Pissarro para Pontoise…). A busca por novas aventuras picturais conduz ao refúgio na região do Midi (Van Gogh,
Gauguin e Cézanne) ou na Bretanha (Gauguin, Bernard), ao passo que os artistas do movimento Nabi privilegiam a intimidade de universos interiores."

Comissária

Caroline Mathieu, curadora chefe do Museu de Orsay

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Machado de Assis - Melhores Contos

Melhores Contos - Machado de Assis
Seleção de Domício Proença Filho

Poderia discorrer longo texto sobre a universalidade e atualidade da obra de Machado de Assis que nada estaria acrescentando de novo, do já editado, confirmado, por críticos, literários ou mesmo nobres  tradutores e conhecedores de sua obra, como o Domício Proença Filho, que bem selecionou os Melhores Contos - Machado de Assis.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Anton Tchékhov - Contos de Tchékhov


Anton Tchékhov, Contos - Volume VI - Tradução (do russo): Nina Guerra e Filipe Guerra, Relógio D´ Água Editores, Outubro de 2006.

"Tais pessoas eram capazes de sonhar, mas incapazes de governar. Destruíam as suas vidas e as dos outros. Eram tolas, fracas, fúteis, histéricas; mas. por trás de tudo isto, ouve-se a voz de Tchékhov: abençoado o país que soube gerar este tipo humano. Eles deixavam escapar as ocasiões, evitavam agir, não dormim à noite inventando mundos que não sabiam construir; mas a própria existência destas pessoas, cheias de uma abnegação apaixonada e fervorosa, de pureza espiritual, de elevação moral, o simples facto de estas pessoas terem vivido e talvez ainda viverem hoje, algures, na implacável e reles Rússia actual é uma promessa de futuro melhor, para todos o mundo, porque, de todas as leis da natureza, a mais maravilhosa é talvez a da sobrevivência dos mais fracos."
(Do Prefácio de Vladimir Nabokov no Vol. I)

Depois deste prefácio fica claro que Tchékhov deixa à mostra a faceta social desprivilegiada, tirando um excelente retrato da exclusão, em tom maravilhosamente claro. Seus personagens são os bêbados, as prostitutas, um fugitivo, uma epidemia, enfim, todos aquelas situações em que a história muitas vezes maqueia essa condição humana e social fica totalmente desnudada. Uma linguagem forte, sem perder a sensibilidade, perpassando todos os detalhes da narrativa através da tensão de seus personagens e suas vivência.

A CORISTA

Um dia, no tempo em que ela tinha mais juventude, beleza e voz, estava na sua casa de campo, na sobreloja, Nikolai Petróvitch Kolpakov, seu admirador. O calor e o ar abafado eram insuportáveis. Kolpakov acabara de almoçar e, como bebera uma garrafa inteira de vinho do Porto horrendo, estava mal-humorado e indisposto. Ambos se aborreciam e esperavam que o calor acalmasse para irem dar um passeio.
De repente tocou a campainha da porta de entrada. Kolpakov, que estava sem sobrecasaca e de pantufas, saltou do lugar e olhou interrogativamente para Pacha.
- Deve ser o carteiro, ou talvez uma amiga - disse a cantora.
Kolpskov não tinha vergonha do carteiro nem das amigas de Pacha, mas, para o que desse e viesse, apanhou toda a sua roupa numa braçada e foi para o quarto contíguo, enquanto Pacha corria a abrir a porta. À entrada, para seu grande espanto, não estava o carteiro nem uma amiga, mas uma desconhecida, jovem, bonita, vestida como uma senhora e, por todos os indícios, das decentes.
A desconhecida estava pálida e respirava com dificuldade, como depois de se subir uma escada alta.
- O que deseja? - perguntou Pacha.
A senhora demorou a responder. Deu um passo em frente, passou um olhar lento pela sala e sentou-se, com o ar de quem já não pode ficar mais tempo de pé por cansaço ou por doença; depois, durante muito tempo, ficou a mexer os lábios exangues, tentando pronunciar qualquer coisa.
- O meu marido está consigo? - conseguiu articular finalmente, levantando para Pacha os seus olhos grandes com as pálpebras inchadas de chorar.
- Que marido? - sussurro Pacha e ficou de súbito tão assustada que sentiu as mãos e os pés a gelarem-lhe. - Que marido? - repetiu, começando a tremer.
- O meu marido... Nikolai Petróvitch Kolpakov.
- Não... não senhora... Eu... eu não conheço marido nenhum.
Um longo momento de silêncio. A desconhecida passou várias vezes o lenço pelos lábios pálidos e, para vencer o tremor, retinha a respiração. Pacha estava em frente dela como petrificada e olhava-a com perplexidade e medo.
- Diz-me então que ele não está cá? - perguntou a senhora com uma voz já firme e sorrindo de forma estranha.
- Eu... não sei de quem está a falar.
- Você é uma  mulher abominável, ignóbil, nojenta... - murmurou a desconhecida, envolvendo Pacha num olhar cheio de ódio e de repugnância. - Sim, sim... é nojenta. Estou satisfeita por poder finalmente dizer-lhe isto na cara!
Pacha sentiu que causava àquela senhora de preto, com os olhos zangados e os dedos finos e brancos, a sensação de qualquer coisa nauseabunda e monstruosa, e sentiu vergonha das suas faces rechonchudas e vermelhas, das marcas de bexigas no nariz e da franja na testa que não havia meio de puxar para cima. E parecia-lhe que se fosse magrinha, sem pó-de-arroz nem franja, poderia esconder que era uma mulher indecente e não teria medo nem vergonha de se ver em frente desta senhora desconhecida e misteriosa.
- Onde está o meu marido? - continuou a senhora. - De resto, tanto me faz que esteja aqui ou não, mas tenho a dizer-lhe, a si, que foi descoberto um desfalque e Nikolai Petróvitch é procurado pela polícia... Querem prendê-lo. Veja bem o que você fez!
A senhora levantou-se e, muito emocionada, pôs-se a passear pela sala. Pacha olhava para ela, e o seu medo era tanto que não percebia.
- Ainda hoje vão encontrá-lo e prendê-lo - soluçou a senhora, e ouvia-se a irritação e o insulto nos seus soluços. - Eu bem sei quem o levou até este horror! Criatura nojenta, repugnante! Abominável, venal! (A senhora franzia o nariz, torcia os lábios de repulsa.) Sinto-me imponente... Oiça você, mulher reles!... Não posso fazer nada, é mais forte do que eu, mas há quem me defenda, a mim e aos meus filhos! Deus vê tudo! Deus é justo! Deus vai castigá-la por cada lágrima minha, por cada noite que passei sem dormir! Há-de chegar a altura em que você se vai lembrar mim!
Caiu de novo o silêncio. A senhora andava pela sala e torcia as mãos, e Pacha olhava para ela com ar lorpa e perplexo, sem compreender, esperando que saísse dali qualquer coisa medonha.
- Minha senhora, eu não sei nada! - disse ela, e desatou a chorar.
- Mentirosa! - gritou a senhora, e os seus olhos brilharam de raiva. - Sei tudo! Há muito que a conheço! Sei que no último mês ele tem estado consigo todos os dias!
- É verdade. E depois? Que importância tem isso? Há muita gente que me visita, mas eu não obrigo ninguém a vir cá. A vontade é deles.
- Acabei de lhe dizer: foi descoberto um desfalque! Ele gastou dinheiro do serviço em proveito próprio! Para uma... como você, para si, ele atreve-se a cometer um crime. Oiça - disse a senhora em voz resoluta, parando em frente de Pacha. - Você pode não ter princípios, já que vive apenas para fazer o mal, é o seu objectivo, mas é impensável que tenha caído tão baixo ao ponto de não ter qualquer vestígio de sentimento humano! Ele tem mulher, filhos... Se for condenado e deportado, eu e os meus filhos morrerremos de fome... Tente compreender! Há uma maneira de o salvar e de nos salvar a nós da miséria e da vergonha. Se eu pagar hoje novecentos rublos, deixam-no em paz. Apenas novecentos rublos!
- Quais novecentos rublos? - perguntou Pacha em voz baixa. - Eu... eu não sei de nada... Não lhe levei...
- Não lhe peço os novecentos rublos... Você não os tem, nem eu quero o seu dinheiro. Peço-lhe outra coisa... Normalmente, os homens oferecem às mulheres da sua condição coisas preciosas. Devolva-me apenas as prendas que o meu marido lhe deu!
- Minha senhora, ele não me ofereceu nada! - guinchou Pacha, começando a compreender.
- Então, onde está o dinheiro? Ele esbanjou o dele, o meu e o alheio... Onde desapareceu tudo isto? Oiç, peço-lhe! Eu estava indignada e disse-lhe muitas coisas desagradáveis, mas peço desculpa. Deve odiar-me, eu sei, mas se tiver compaixão pode pôr-se no meu lugar! Imploro-lhe, devolva-me as jóias!
- Humm... - disse Pacha e encolheu os ombros. - Dava-lhas de boa vontade, mas Deus me fulmine já se ele me deu alguma coisa. Acredite na minha consciencia. Aliás, tem razão - embaraçou-se a conatora -, uma ocasião trouxe-me duas coisinhas. Devolva-lhas, faça o favor...
Pacha tirou de uma das gavetinhas do toucador uma pulseira de ouro oca e um anel barato com rubi.
- Tome! - disse ela, entregando as jóias à visitante.
A senhora corou, tremeu-lhe o rosto. Sentiu-se insultada.
- O que está a dar-me? - disse. - Não lhe peço uma esmola mas aquilo que não lhe pertence... aquilo que você, fazendo uso de sua condição, extorquiu ao meu marido... esse homem fraco, desgraçado... Na quinta-feira, quando a v i com o meu marido no cais, você tinha broches e pulseiras caros. Por isso não vale a pena fingir-se um cordeiro inocente! Pergunto pela última vez: devolve-me as jóias ou não?
- Que mulher estranha é a senhora, credo... - disse Pacha, começando a ofender-se. - Da parte do seu Nilolai Petróvitch, juro-lhe que só vi estas pendas, uma pulseira e um anel. Só me trazia pastéis doces.
- Pastéis doces... - sorriu-se a desconhecida. - Em casa, as crianças não têm nada para comer, mas para aqui vêm pastéis doces. Recusa-se então, definitivamente, a devolver-me as jóias?
A senhora, não recebendo resposta, sentou-se e, com ar pensativo, fixou os olhos num ponto vago.
- O que faço agora? - disse. - Se não arranjar novecentos rublos, é o fim dele e também o meu e dos filhos. Mato esta velhaca ou ponho-me de joelhos diante dela?
A senhora apertou o lenço à cara e desatou a chorar.
- Peço-lhe! - disse por entre os soluços. - Você arruinou o meu marido, levou-o à perdição, agora salve-o... Não é compaixão por ele, mas pelos filhos... os filhos...Que culpa têm os filhos?
Pacha imaginou umas crianças pequenas, na rua, a chorarem de fome, e começou também a chorar.
- O que posso fazer, minha senhora? - disse ela. - A senhora diz que sou velhaca e arruinei Nikolai Petróvitch, mas eu juro-lhe perante Deus que não tirei proveito nenhum dele... No nosso coro, só a Mótia tem um protector rico, mas nós, as outras todas, vivemos de mal a pior. Nikolai Petróvitch é um senhor culto e delicado, por isso é que o recebo. Não podemos deixar de receber...
- Peço-lhe as jóias! As jóias Estou aqui a chorar... a humilhar-me... Está bem, ponho-me de joelhos! Está bem!
Pacha soltou um grito de susto e abanou as mãos. Sentia que a senhora pálida e bonita que se exprimia com tanta nobreza, como no teatro, era realmente capaz de se ajoelhar diante dela, precisamente por orgulho, por nobreza, para se engrandecer e para humilhar a corista.
- Está bem, eu dou-lhe as jóias! - decidiu Pacha, limpando os olhos. - Mas olhe que não são de Nikolai Petróvitch... Recebi-as de outros convidados. Mas como queira...
Pacha abriu a gaveta superior da cómoda, tirou de lá um broche com diamantes, um fio de corais, vários anéis, uma pulseira e deu tudo à senhora.
- Já que as quer, tome, mas não tirei proveito enhum do seu marido. Tome, enriqueça! - continuou Pacha, sentindo-se insultada com a ameaça de ela se pôr de joelhos. - Mas se é nobre... esposa legítima dele, deveria mantê-lo ao pé de si. É isso! Eu não o convidava, ele vinha cá porque queria...
A senhora, por entre as lágrimas, examinou as jóias e disse:
- Não chega... Isto nem quinhentos rublos faz.
Pacha, impulsivamente, atirou-lhe da cómoda ainda um relógio de ouro, uma tabaqueira e botões de punho, e disse, abrindo os braços:
- Não tenho mais nada... Nem que me reviste!
A visitante suspirou, embrulhou tudo num lenço, com as mãos a tremer, e, sem dizer palavra, sem acenar sequer com a cabeça, saiu.
Abriu-se logo a porta do quarto do fundo e entrou Kolpakov. Estava pálido e sacudia nervosamente a cabeça, como se acabasse de tomar qualquer coisa muito amarga; brilhavam-lhe as lágrimas nos olhos.
- Que coisas o senhor me trazia? - investiu logo Pacha. - Quando, se me permite a pergunta?
- Coisas... O que interessam as coisas? - disse Kolpakov e sacudiu a cabeça. - meu Deus! Ela a chorar, a humilhar-se diante de ti...
- Pergunto-lhe: que coisas me trouxe? - gritou Pacha.
- Meu Deus, ela, tão decente, orgulhosa, pura... a querer pôr-se de joelhos à frente... à frente desta... rameira! Ao ponto a eu eu a levei! Fui eu!
Deitou as mãos à cabeça e gemeu:
- Não, nunca hei-de perdoar-me! Nunca! Afasta-te de mim... porca! - gritou com repugnãncia, recuando e repelindo Pacha com as mãos a tremerem. - Ela já queria ajoelhar-se e... diante de quem? Diante de ri! Oh, meu Deus!
Vestiu-se rapidamente e, contornando Pacha com nojo, dirigiu-se para a porta e saiu.
Pacha deitou-se e desatou num alto choro. Já tinha pena das suas coisas que entregara num impulso, estava ressentida. Lembrou-se de que, três anos atrás, um comerciante a espancou sem razão e ela chorou ainda mais alto.


Anton Tchékhov
1860 - Em 17 de janeiro nasce Anton Pavlovitch Tchekhov, em Tanganrog, na Rússia, filho de Pavel Yegorovich Tchekhov e Yevgenia Morozov.
1875 - O pai de Tchekhov foge da cidade e abandona a família quando sua mercearia vai à falência.
1879 - Tchekhov ingressa na faculdade de Medicina, na Universidade  de Moscou.
1882 - Torna-se colaborador de um periódico humorístico de São Petersburgo, escrevendo contos e vinhetas.
1884 - Começa a praticar a medicina. Apresenta os primeiros sintomas de tuberculose.
1887 - Alcança sucesso literário em São Petersbugo com sua primeira peça, Ivanov.
1890 - Viaja pela Sibéria para entrevistar prisioneiros e exilados.
1895 - Escreve A Gaivota.
1896 - A Gaivota estréia no teatro e é cancelada após a quinta apresentação.
1897 - O estado de saúde de Anton se agrava.
1998 - A Gaivota é produzida com sucesso pelo Teatro de Arte de Moscou.
1899 - Tio Vânia é encenada com sucesso no Teatro de Arte de Moscou.
1901 - Estréia As Três Irmãs, obra considerada sua maior criação. Anton se casa com Olga Knipper.
1904 - É produzida a última peça de Tchekhov, O jardim das Cerejeiras.
Em 2 de julho Anton morre de tuberculose, na Alemanha.


domingo, 26 de agosto de 2012

Coleção Mário Quintana



Da sabedoria dos livros
Não penses compreender a vida nos autores,
Nenhum disto é capaz.
Mas, à medida que vivendo fores,
Melhor os compreenderás.
(Espelho Mágico, p. 39 - Coleção Mário Quintana, Globo, 2005)
A Coleção Mário Quintana está a bastante tempo me observando da prateleira. Simples, convidativa, como um amigo a dar o ombro em um momento necessário. Assim é Mário Quintana, uma prosa boa sem fim que estará de braços abertos como um amigo se faz ouvir. Hoje acordei precisando de poesia, simples, amiga. Ninguém melhor do que Mário Quintana para nos acompanhar.

A coleção é composta pelos livros: Espelho Mágico, Sapato Florido, Baú de Espantos e Canções.


quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Festival Varilux de Cinema Francês 2012



O Festival Varilux de Cinema Francês de 2012 ocorrerá no período de 15 a 23 de agosto do corrente ano.

Pesquise a programação de tua cidade aqui.

A vida vai melhorar
O barco da esperança
Uma garrafa no mar de Gaza

Boa oportunidade de assistir cinema de qualidade!

sábado, 14 de julho de 2012

Samuel Beckett - Esperando Godot


Samuel Beckett - Esperando Godot - Tradução e prefácio de Fábio de Souza Andrade - Cosacnaify.

Releio Esperando Godot, um livro para a vida que surpreende pela suposta despretensiosa linguagem envolvendo o leitor em todo o percurso do hilariante texto. Havia lido o livro em 2008 entretanto é um texto para ser relido pela filosofia com que o autor expõe as incoerência humanas e a capacidade de falta de persperctivas ou mudanças com que a sociedade por vezes atravessa sua história sem que a perceba.

Assim conta o autor a história de dois vagabundos, talvez em algum lugar da França, maltrapilhos mas pontuais, atendem dia após dia ao chamado de um tal sr. Godot que prima por não comparecer, supondo-se que tenha de fato marcado o encontro. A espera e a angústia de Vladimir e Estragon neste nó dramático, virou peça teatral, escrita em francês pelo dramaturgo, romancista e poeta irlandês agraciado com o prêmio Nobel de Literatura de 1969, durante o admirável decênio do pós-guerra que viu surgir o essencial de criação de Beckett (Esperando Godot, Fim de partida, mais a trilogia romanesca de Mollory, Malone morre e O inominável), a peça estreou em Paris, no ano de 1953, sendo o divisor de águas do teatro do século XX.

VLADIMIR
Estou curioso para saber o que ele vai propor. Sem compromisso.

ESTRAGON
O que era mesmo que queríamos dele?

VLADIMIR
Você não estava junto?

ESTRAGON
Não prestei muita atenção.

VLADIMIR
Ah, nada de muito específico.

ESTRAGON
Um tipo de prece.

VLADIMIR
Isso!

ESTRAGON
Uma vaga súplica.

VLADIMIR
Exatamente!

ESTRAGON
E o que ele respondeu?

VLADIMIR
Que ia ver.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Praia Campista - Macaé - RJ



Praia Campista - Macaé - RJ

O mar hoje não está para peixe, definitivamente.
Um bom dia a todos!

sábado, 23 de junho de 2012

Vik Muniz - Lixo extraordinário

Vix Muniz - Lixo extraordinário 

Lixo Extraordinário, Vik Muniz, textos Alexei Bueno e Vik Muniz, G. Ermakoff casa editorial, 2010

Livro fenomenal que não pode ser desacompanhado do dvd documentário de nome similar é um projeto repleto de beleza e de significados. Narra, em numerosas imagens e textos de Alexei Bueno e Vik Muniz, essa epopeia de inesperadas metamorfoses, do soerguimento de vidas que muitos julgariam à margem de qualquer esperança.

Brava narrativa o forte documentário mostra o dia a dia no maior aterro sanitário do mundo (extinto em 2012), apresentando personagens inesquecíveis, que transformam um ambiente hostil em um meio digno de ganhar a vida.

O documentário mostra toda a tansformação que a arte de Vik Muniz ocasiona quando se propõe a ir além onde o humano faz parte desta arte recriada gerando forte emoção em quem tem a oportunidade de conhecer o desfecho dado a matéria prima inicial que teoricamente, como bem pontuou Sebastião Carlos dos antos (Tião), representante dos trabalhadores de reciclagem: lixo não porque lixo é tudo o que não tem aproveitamento, material reciclável sim.







Imperdível!


No momento Vik Muniz está expondo na Galeria Coleção de Arte, no Flamengo, Rio de Janeiro: Aterro no flamengo, o resto é arte.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Poemário


Drumundiana


E agora maria?

o amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu nome foi pra vida
que tudo cria
a fantasia
que você sonhou
apagou
à luz do dia

e agora maria?
vai com as outras
vai viver
com a hipocondria

se por acaso
a gente se cruzasse
ia ser um caso sério
você ia rir até amanhecer
eu ia ir até acontecer
de dia um improviso
de noite uma farra
a gente ia viver
com garra

eu ia tirar de ouvido
todos os sentidos
ia ser tão divertido
tocar um solo em dueto

ia ser um riso
ia ser um gozo
ia ser todo dia
a mesma folia
até deixa de ser poesia
e virar tédio
e nem o meu melhor vestido
era remédio

daí vá ficando por aí
eu vou ficando por aqui
evitando
desviando
sempre pensando
se por acaso
a gente se encontrasse...

(Alice Ruiz - Poemário)

Nota: Paródia do poema "José", 
de Carlos Drummond de Andrade

A PONTA DO ICEBERG: vitalidade e expansão, assim define Antônio Miranda, um amante das boas letras, em especial poesia, quando se refere as expectativas da poesia tendo em vista a atual proliferação dos Blogs gerando a multiplicação dos estilos, no livro Poemário, compêndio de poesia da I Bienal Internacional de Poesia de Brasília, edição 2008, gentilmente presenteado.

Alice Ruiz (Brasil) entre outros autores compõem este maravilhoso livro onde os homenageados são Affonso Romano de Sant´anna, Reynaldo Jardim, Thiago de Mello e Wladimir Diaz-Pino:

Alice Spíndola (Brasil)
Amparo Osório (Colômbia)
Antônio Carlos Secchin (Brasil)
Antônio Cisneros (Peru)
Antônio Vicente Petroforte (Brasil)
Aricy Curvello (Brasil)
Aristóteles Espanã (Chile)
Betty Chiz (Uruguai)
Carlos Ortega Guerreiro (México)
Daniel Chirom (Argentina)
Diego Mendes Sousa (Brasil)
Eduardo García (Espanha)
Eduardo Mora-Anda (Equador)
Elena Medel (Espanha)
Emilia Currás (Espanha)
Enrique Hernández d´Jesús (Venezuela)
Fábio Morabito (México)
Fabrício Carpinejar (Brasil)
Fernando Pinto do Amaral (Portugal)
Frederico Barbosa (Brasil)
Gilberto Mendonça Teles (Brasil)
Hector Collado (Panamá)
Henryk Siewierski (Polônia)
Jorge Tufic (Brasil)
José Carlos Capinan (Brasil)
José Carlos Irigoyen (Peru)
José Geraldo Neres (Brasil)
Juan Carlos Pajares (Espanha)
Juan Carlos Reche (Espanha)
Katia Chiari (Panamá)
Lourdes Sarmento (Brasil)
Luiz Otavio Oliani (Brasil)
Manoel Orestes Nieto (Panamá)
Manuel Pantigoso (Peru)
Márcia Theóphilo (Itália)
Márcio Almeida (Brasil)
Marcos Caiado (Brasil)
Margot Ayala de Michelagnoli (Paraguai)
Maria Romeu (México)
Mathias Lockart (Argentina)
Miguel Ángel Zapata (EUA)
Miguel Márquez (Venezuela)
Moacir Amâncio (Brasil)
Ricardo Corona (Brasil)
Roberto Bianchi (Uruguai)
Ronaldo Werneck (Brasil)
Rubenio Marcelo (Brasil)
Rui Mascarenhas (Brasil)
Susana Cabuchi (Argentina)
Susy Morales (Peru)
Silvio Beck (Brasil)
Testa Garibaldo (Panamá)
Trina Quiñomes (Venezuela)
Vadinho Velhinho (Cabo Verde)
Veronica Volkow (México)
Viviane Mosé (Brasil)
Wilfredo Machado (Venezuela)
William Ospina (Colômbia)
Zélia Bora (Brasil)

I Bienal Internacional de Poesia : Poemário / Biblioteca Nacional de Brasília, 2008


sábado, 14 de abril de 2012

Maurice Druon - O menino do dedo verde


"- Aprendi - respondeu Tistu -  que a medicina não pode quase nada contra um coração muito triste. Aprendi que para a gente sarar é preciso ter vontade de viver. Doutor, será que não existem pílulas de esperança?
O Dr. Milmales ficu espantado com tanta sabedoria num garoto tão pequeno.
- Você aprendeu sozinho a primeira coisa que um médico deve saber.
- E qual é a segunda, doutor?
- É que para cuidar direito dos homens é preciso amá-los bastante."

O menino do dedo verde, de Maurice Druon (1918-2009), tradução de D. Marcos Barbosa / ilustrações de Marie Louise Nery - 87a. ed. - Rio de Janeiro:José Olympio, 2009.

Acabo de reler o belíssimo livro O menino do dedo verde, que desperta e resgata nobres sentimentos acerca da vida, do se fazer no mundo, um ensaio filosófico escrito poeticamente e com extrema leveza.
  
Assim como O pequeno príncipe, em que o autor é tradutor, O menino do dedo verde passou pela terra com sua misteriosa personagem. O autor se utiliza de Tistu, um menino do dedo verde e suas incríveis proezas orientado por um velho jardineiro mensageiro da paz para levar sérias reflexões acerca da vida humana, seja em um conglomerado de favelas, as realidades de um presídio, um hospital, um jardim zoológico ou ainda de uma fábrica de canhões. Enfim, em que condições sociais ainda há esperança de um mundo em que as flores não tem tido vez, distanciando o homem cada vez mais de sua essência, a busca da felicidade.

Maurice Druon, ex-ministro da Cultura, da Academia Francesa desde 1966, nasceu a 23 de abril de 1918, em Paris. Já em 1936arrebatava prêmios e menções honrosas por sua aplicação nos estudos secundários, complementados no Liceu Michelet, de onde saiu para a Sorbonne e a Escola de Ciências Políticas. Aspirante de Cavalaria no início da Segunda Guerra Mundial, participou ativamente da luta antinazista em 1940, quando chegou à Inglaterra via Espanha, a fim de se engajar nas chamadas Forças Francesas de Libertação. É quando participa de programas de radiofusao e- com o tio também escritor Joseph Kessel em 1943 - compõe a letra do canto Les partisans, ainda hoje ouvida com grande emoção pelo povo francês. Depois do desembarque aliado no continente europeu, Maurice Druon passa a correspondente de guerra não só no seu país, mas igualmente na Alemanha e Holanda.

Maurice Druon tem a sua obra marcada pela violência e vigor caracterísitcos de sua vida pessoal, e - segundo críticos de seu país - se distingue pela honestidade com que soube aliar ficção literária com História, onde o choque das armas e o trágico das paixões contam umafase importante na literatura francesa contemorânea. Escreveu uma infinidade de livros.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Manifesto - Carla Guedes

Auto-retrato - Carla Guedes

Assim me mostro de repente:
Rebelde, com causa anunciada.
Gesticulo, falo, trago o coração à tona
Desobedeço minhas próprias regras
Que é pra ver se ainda há esperança.

Jovens, tão jovens embora
De discurso tão fluido
E com tintas tão vivas nas mãos:
Querem escrever o futuro que escolheram
Pra chamar de seus.

Seus sonhos foram outros, talvez
Mais pintados de ouro que de suor.
Mas não se assustam, nem correm:
Se unem, irmanizam, e abraçam
Que é pra ver se ainda há esperança.

Escrevem panfletos, pregam nas praças,
Se preparam para o pior:
Privações, coações, não serem ouvidos
Mas nem por isso desistem
Porque não esperam, e sabem o porquê.

Avançam trôpegos, roucos, cansados
Por vezes até incompreendidos,
Por muitos até improváveis.
Mas fazem valer cada minuto da existência
Que é pra ver se ainda há esperança.

Encontrei este belo poema da poetisa e escritora Carla Guedes no site A arte procurando ser reposta. Retrato de uma geração.

terça-feira, 27 de março de 2012

Metáforas da Alma - Paulo Roberto de Aquino Ney

Metáforas da Alma -
Paulo Roberto de Aquino Ney
Metáforas da Alma, de Paulo Roberto de Aquino Ney, um livro que tenho um imenso carinho por falar de poesia com extrema sensibilidade, com elevadíssima linguagem. Retorno à poesia de Paulo Ney, como quem tem sede em uma longa caminhada desértica, uma ducha refrescante à alma ressequida de boas letras.
Difícil é selecionar apenas um poema. Inicio pelo primeiro:

ASAS
Nascem... renascem...
(todos os dias)
tantos poemas
entretecidos
dentro de mim,
que sempre e sempre,
sempre os navego,
do ponto cego
ao próprio ponto
que vê os idos
tempos sem fim.
E tu, Poeta,
sempre navegas
o teu poema?
E, se navegas,
acaso pregas
nas linhas cegas
os teus sinais?
Se não o fazes,
serão capazes
as tuas frases
originais?
E, quando escreves,
acaso dizes
as cicatrizes
do teu porão?
Se, tudo isso,
tu não consegues,
melhor que ancores
os teus escritos
(mesmo bonitos)
no porto-morto
da tua palma:
versos sem alma
não voam não!

Segundo prefácio de Arlete Parrílha Sendra, Metáforas da Alma cumpre a missão da poesia: abrir para o outro que está além-linguagem expressível. Não como recusa do dizer mas como metáforas possíveis do ato de dizer o que a alma armazena E a terrível saga da incompletude do dizer.

Paulo Roberto de Aquino Ney nasceu em Campos dos Goytacazes (RJ) no dia 18 de junho de 1943. Pertence ao Instituto Campista de Literatura, à Academia Campista de Letras e à Academia Fluminense de Letras. Possui quatro livros de poesia publicados: Estrelas de meu céu, Reminiscências, Degraus de Pedra e Sargaços.

sábado, 17 de março de 2012

Eduardo Galeano - Mulheres

Mulheres - Eduardo Galeano
Mulheres  / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - Porto Alegre: L&P, 1998, é um simpático livro que aborda como tema mulheres distintas e singular , sejam jovens ou não, mas todas com a característica de surpreender pela maneira de pensar, agir. Enfim, Maravilhosas mulheres por quem o autor teve um olhar diferenciado como a querer eternizá-las em suas letras.

quarta-feira, 7 de março de 2012

La Fontaine - fábulas - ilustradas por Gustavo Doré



"Sirvo-me de animais para instruir os homens.
Algumas vezes oponho, através de uma dupla imagem
O vício à virtude, a tolice ao bom senso.
(...)
Uma moral nua provoca o tédio:
O conto faz passar o preceito com ele,
Numa espécie de fingimento, é preciso instruir e agradar
Pois contar por contar, me parece de pouca monta."
(Jean de La Fontaine)

La Fontaine fábulas, ilustradas por Gustavo Doré, Vol. I e II, editora Landy, 2003 é um livro para se ler antes de dormir como nos tempos infantis. Leitura leve, irreverente, para todas as faixas etárias. Consigo imaginar o impacto que o autor causava nos leitores da época em que escrevia e publicava seu maravilhoso trabalho, tão atual até os dias de hoje. Um livro imprescindível na estante.


FÁBULA VII

O VELHO, O RAPAZ E O BURRO

O mundo ralha de tudo,
Tenha ou não tenha razão,
Quero contar uma história
Em prova desta asserção.

Partiu um velho campônio
Do seu monte ao povoado;
Levava um neto que tinha,
No seu burrinho, montado.

Encontra uns homens que dizem:
"Olha aquela que tal é",
Montado o rapaz, que é forte,
E o velho trôpego a pé!

- Tapemos a boca ao mundo,
O velho disse: - Rapaz,
Desde do burro, que eu monto,
E vem cainhando atrás".

Monta-se, mas dizer ouve:
"Que patetice tão rata!
O tamanhão no burrinho,
E o pobre pequeno à pata!

- Eu me apeio, diz, prudente,
O velho de boa fé;
Vá o burro sem carrego,
E ambos vamos a pé".

Apeiam-se, e outros lhes dizem:
"Toleirões, calcando a lama!
De que lhes serve o burrinho?
Dormem com ele na cama?

- Rapaz, diz o bom do velho,
Se de irmos a pé murmuram,
Ambos no burro montemos,
A ver se ainda nos censuram".

Montam, mas ouvem de um lado:
"Apeiem-se, almas de breu,
Querem matar o burrinho?
Apost que não é seu!

Vamos ao chão, diz o velho,
Já não sei que hei de fazer!
O mundo está de tal sorte,
Que não se pode entender.

É mau se monto no burro,
Se o rapaz monta, mau é;
Se ambos montamos, é mau,
E é mau se vamos a pé!

De tudo me tem ralhado;
Agora que mais me resta?
Peguemos no burro às costas,
Façamos inda mais esta!

Pegam no burro; o bom velho
Pelas mãos o ergue do chão,
Pega-lhe o rapaz nas pernas,
E assim caminhand vão.

"Olhem dois loucos varrido!
Ouvem com grande sussurro, -
Fazendo mundo às avessa,
ornados burros do burro!"

O velho, então, pára, e exclama:
"Do que observo me confundo!
Por mais que a gente se mate,
Nunca tapa a boca ao mundo.

Rapaz, vamos como dantes,
Sirvam-nos estas lições;
É mais que tolo quem dá
Ao mundo satisfações".

CURVO SEM MEDO

Esta edição, traduzida por poetas brasileiros e portugueses, como Raimundo Corrêa, Machado de Assis, Bocage, Filinto Elísio entre outros, mais se enriquece com as ilustrações de Gustavo Doré, famoso ilustrador que também produziu criações para o D. Quixote, A Divina Comédia e Orlando Furioso, obras-primas da literatura universal.

São apresentados quatro livros com as mais belas fábulas:

Livro Primeiro
O lobo e o cão (Barão de Paranapiacaba)
O velho e a morte (Gonçalves Crespo)
O burro vestido com a pele do leão (Curvo Semmedo)
Ossos do ofício (João de Deus)
O rato anacoreta (Costa e Silva)
O leão e outros animais (Fernando Leal)
A raposa e as uvas (Bocage)
O bêbado e sua mulher (E. A. Vidal)
O leão que vai à guerra (Filinto Elísio)
O leão e o mosquito (J. I. D´Araujo)
O lobo e o grou (a cegonha) (Malhão)
Os animais enfermos da peste (Machado de Assis)
O leão velho (Bocage)
O rato da cidade e o do campo (Barão de Paranapiacaba)
O burro e os donos (Curvo Semmedo)
Os dois pombos (José Antonio de Freitas)
O lobo e o cordeiro (Barão de Paranapiacaba)
O homem e a sua imagem (Teófilo Braga)


Livro Segundo
O homem e o bosque (Costa e Silva)
A morte e o desgraçado (Gomes Leal)
O corvo e a raposa (Bocage)
A andorinha e os outros passarinhos (B. de Paranapiacaba)
O homem de meia idade (Couto Guerreiro)
O gato e o macaco (Garcia Monteiro)
A raposa e a cegonha (J. I. D´Araujo)
O veado enfermo (Filinto D´Almeida)
O leão vencido pelo homem (Bocage)
A panela de ferro e a panela de barro (Acácio Antunes)
Os lobos e as ovelhas (J. I. D´Araujo)
A ingratidão dos homens acerca da fortuna (Filinto Elísio)
As rãs que pedem rei (Barão de Paranapiacaba)
Os médicos (Curvo Semmedo)
O filósofo cita (J. Mariano de Oliveira)
O camelo (Couto Guerreiro)
O avarento que perdeu o tesouro (Ramos Coelho)
O leão caçando com o burro (Barão de Paranapiacaba)
A lebre e as rãs (E. A. Vidal)

Livro Terceiro
Os mateiros e mercúrio (Costa e Silva)
Os zangãos e as abelhas (Barão de Paranapiacaba)
O leão doente (Curvo Semmedo)
Os dois dragões (Júlio de Castilho)
A cerva e a vide (Couto Guerreiro)
O mono e o leopardo (Silva Ramos)
O leão e o caçador (Barão de Paranapiacaba)
O rato e o elefante (A. Lopes Cardoso)
A raposa derrabada (Curvo Semmedo)
Os ladrões e o asno (Gomes de Amorim)
O sol e o vento (Couto Guerreiro)
Os dois touros e a rã (Barão de Paranapiacaba)
A ostra e os pleiteantes (Filinto Elísio)
A leoa e a ursa (Raimundo Correa)
As orelhas da Lebre (Curvo Semmedo)
A águia e o mocho (Jaime Vitor)
O lavrador e seus filhos (Couto Guerreiro)
O gato e o rato velho (José Antonio de Freitas)
O sol e as rãs (Antonio Pitanga)
O carvalho e a cana (José Ignácio D´Araujo)

Livro Quarto
O congresso dos ratos (Barão de Paranapiacaba)
O menino e o mestre-escola (João C. de Menezes e Souza)
A fortuna e o rapaz (Couto Guerreiro)
O passarinho, o açor e a cotovia (Maximiliano D´Azevedo)
O pastor e o mar (Filinto Elísio)
O marido, a mulher e o ladrão (Hipólito de Camargo)
O velho, o rapaz e o burro (Curvo Semmedo)
O macaco (Barão de Paranapiacaba)
O mergulhão, a silva e o morcego (Couto Guerreiro)
A torrente e o rio (Silva Ramos)
O cisne e o cozinheiro (Filinto Elísio)
O porco, a cabra e o carneiro (J. I. D´Araujo)
A cotovia e os filhos (Curvo Semmedo)
O milhafre e o rouxinol (Barão de Paranapiacaba)
Os dois galos (Couto Guerreiro)
O estatuário e a estátua de Júpiter (Raimundo Corrêa)
O doido que vende siso (Barão de Paranapiacaba)
O elefante e o macaco de Júpiter (Dr. Brasílio Machado)
O homem e a cobra (Costa e Silva)
Os peixes e o pastor que toca flauta (J.I.D´Araujo)

La Fontaine nasceu em 1621 em Château-Thierry. Em 1647 foi para Paris, onde iniciou carreira literária. Frequentou a Corte de Luis XIV e os meios literários parisienses. Chegou a frequentar um grupo de que faziam parte Racine, Boileau e Moliére. Escreveu contos, cultivou a poesia, também escreveu a comédia "Climene". Mas são as suas Fábulas que ganharam fama. Para escrevê-las tomou temas de Esopo e Fedro e da mitologia clássica. Tratou esses temas de modo reinventivo. Como bom poeta que foi, soube manejar o verso com brilho, o que resultou em um belo conjunto, atraente pela leveza e pelo espírito irreverente e irônico que nele imprimiu. Por isso suas fábulas resistiram ao tempo e continuam a atrair leitores de todo o mundo.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Augusto dos Anjos - Cem Anos de Poesia

Augusto dos Anjos

VERSOS ÍNTIMOS
Vês, Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O eijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja esta mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


Augusto dos Anjos nasceu no dia 20 de abril, em Cruz do Espírito Santo, PB e morreu em 12 de novembro, em Leopoldina, MG.
Augusto dos Anjos era filho de usineiros que entraram em decadência no rastro das transformações políticas e econômicas causadas pela Abolição e pela Proclamação da República. Formou-se em Direito, no Recife, onde tomaria conhecimento das doutrinas materialistas e evolucionistas de Comte, Darwin e Spencer, que marcariam a sua visão do mundo e a sua poesia. Formou-se em 1907, retornando à terra natal como professor do Liceu Paraibano. Em 1910, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde lecionou no Ginásio Nacional, hoje Colégio Pedro II.
Publicou seu primeiro poema, o soneto Sau-dade, aos 15 anos. Se amigo Orris Soares descreve o poeta, na época: "Apresentava uma magreza esquálida, faces reentrantes, olhos funods, olheiras violáceas e testa descalvada." Augusto dos Anjos estava condenado pela crítica ao ostracismo. Os modernistas, por exemplo, consideravam seus poemas verborrágicos, de profundo mau gosto. Foi o público leitor quem deu fama póstuma ao poeta. Carlos Augusto Correa ressalta "a maneira inaugural como o poeta desnaturalizou o cimento de uma ideologia caduca e parnasianíssima, e soube trazer para o bojo do poema, numa espécie de síntese rejuvenescida, o material científico e filosófico de sua época."
Seu único livro publicado em vida, Eu, financiado por ele e pelo irmão Odilon, é hoje um dos mais lidos no Brasil, com mais de 40 edições, que vem apresentadas por nomes como Álvaro Lins, Francisco de Assis Barbosa, M. Cavalcanti Proença, Alceu Amoroso Lima, Otto Maria Carpeaux e Manuel Bandeira. Ferreira Gullar observa que "a necessidade de não se desprneder do vivido, de não traí-lo, de não disfarçá-lo com delicadezas, de erguê-lo de sua vulgaridade à condição de poesia e o salto que a sua obra significa". E enfatiza: "Há poetas que escreveram muitos livros mas só alguns poemas realmente significativos. E poucos são aqueles que conseguiram realmente criar uma obra poética, um universo poético próprio. Augusto dos Anjos é um destes."
Em Augusto dos Anjos há uma ausência de poemas de amor carnal, que, para ele, não era amor, não passava de "comércio físico nefando". O amor-amizade, no qual acreditava, encontrou-o em 1910, ao se casar com Esther Fialho, com quem teve dois filhos.
Em 1914, já tuberculoso, mudou-se para Leopoldina, em Minas Gerais, onde foi nomeado diretor do Grupo Escolar. Meses depois, morreu como viveu: na obscuridade. Um amigo, ainda enlutado, ao encontra-se por acaso com Olavo Bilac, recitou versos de Augusto dos Anjos. Ao terminar, Bilac exclamou: "Era este o poeta que morreu? Ah, então fez bem em morrer. Não se perdeu grande coisa."
A história provou o contrário.

VANDALISMO

Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva gúlgida e nas colunatas
Verem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Com os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E ergendo os gládios e brandido as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

"E a minha obscuridade bem o contata; esta mesma obscuridade que herdei dos meus antepassados, e que tem sido o fanal da minha modesta existência, porque nela fulge a luz do dever, hoje tão infelizente ofuscada pelos falsos reflexos das convenções transitórias."
(Augusto dos Anjos)

"Augusto dos Anjos morreu aos 30 anos. Não creio, porém, ue, se vivesse mais, atenuasse as arestas de sua expressão formal. Esta lhe er congênita e persistiria sem dúvida, como persistiu na maturidade de Euclides da Cunha, em cuja prosa deparamos com o mesmo ímpeto explosivo e indomável."
(Manuel Bandeira)

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