quinta-feira, 26 de março de 2020

Jane Austen - Amor e Amizade

Jane Austen - Amor e Amizade
Livro de Bolso - L&PM Pocket

AMOR E AMIZADE
Enganada na amizade e traída no amor

CARTA PRIMEIRA
De Isabel para Laura

Com que frequência, em resposta às minhas repetidas súplicas para que você transmitisse à minha filha um detalhamento regular das desgraças e aventuras de sua vida, você disse: "Não, minha amiga, jamais atenderei seu pedido até que eu possa já não correr perigo de experimentar outras assim terríveis".
   Esse momento está chegando agora, por certo. Você completa 55 anos no dia de hoje. Se alguma vez é possível, dizer, de uma mulher, que ela está a salvo da determinada perseverança de desagradáveis amantes e das cruéis perseguições de obstinados pais, por certo deve ser em tal momento de vida.
                                                             Isabel


CARTA SEGUNDA
Laura para Isabel

Embora eu não possa concordar com você na suposição de que nunca mais me verei exposta a desgraças tão imerecidas como aquelas que já experimentei, mesmo assim, para evitar a imputação de teimosia ou má índole, vou satisfazer a curiosidade de sua filha; e tomara que a fortitude com a qual sofri as inúmeras aflições de minha vida pregressa lhe provem ser uma lição proveitosa para o apoio daqueles que porventura lhe sucedam em sua própria vida.
Laura



CARTA TERCEIRA
Laura para Marianne

Na condição de filha da minha mais íntima amiga, creio que você tem o direito de conhecer minha infeliz história, que sua mãe tantas vezes me pediu para contar.
   Meu pai era um nativo da Irlanda e um habitante de Gales; minha mãe era filha ilegítima de um fidalgo escocês com uma cantora de ópera italiana - nasci na Espanha e recebi minha educação em um convento na França.
   Tendo alcançado meu décimo oitavo ano, fui chamada de volta por meus pais a meu teto paterno em Gales. Nossa mansão situava-se  numa das partes mais românticas do Vale de Usk. Embora meus encantos estejam agora consideravelmente abrandados e um tanto prejudicados pelos infortúnios  enfrentados por mim, fui linda outrora. Contudo, por mais adorável que eu fosse, as graças de mina pessoa eram as menores das minhas perfeições. De cada talento habitual a meu gênero eu era soberana. Quando no convento, meu progresso sempre havia sucedido minhas instruções, meus conhecimentos haviam se mostrado prodigiosos para minha idade, e eu logo ultrapassara minhas mestras.
   Em minha mente, centravam-se todas as virtudes que podiam adorná-la;  ela era o rendez-vous de todas as boas qualidades e todos os sentimentos nobres.
   Meu único defeito, se de defeito podemos chamá-lo, era uma sensibilidade tremulamente vívida, demasiado atenta a cada aflição de meus amigos, meus conhecidos e, em particular, a cada uma de minhas próprias aflições. Ai de mim, como isso mudou agora! Embora meus próprios infortúnios, com efeito, não causem menos impressão em mim do que jamais causaram, agora, no entanto, nunca sinto nada pelos infortúnios de outrem. Meus talentos também começam a desvanecer - não consigo nem cantar tão bem nem dançar com a mesma graciosidade de outrora - e esqueci completamente o "Minuet Dela Cour".
   Adieu,
Laura

CARTA QUINTA
Laura para Marianne

Certa noite de dezembro, enquanto meu paim minha mãe e eu empreendíamos conversação social em torno de nossa lareira, fomos acometidos, de súbito, por grande assombro com o som de uma batida violenta na porta externa de nosso rústico casebre.
   Meu pai sobressaltou-se.
   - Que ruído será esse? - disse ele.
   - Parecem ser fortes pancadas na porta - respondeu minha mãe.
   - É o que parece mesmo - exclamei.
   - Sou da sua opinião - disse meu pai. - O ruído parece certamente proceder de alguma violência incomum exercida contra nossa inocente porta.
   - Sim - exclamei eu -, não consigo deixar de pensar que só pode ser alguém que bate com intenção de entrar.
   - Essa é outra questão - retrucou ele. - Não devemos ter a pretensão de determinar quais seriam os motivos levando essa pessoa a bater... entretanto, que alguém de fato bate à porta, disso estou em parte convencido.
   Nesse instante, uma segunda e tremenda batida interrompeu meu pai em seu discurso, alarmando, em certa medida, a mim e minha mãe.
   - Não seria melhor irmos ver quem é? - disse ela. - Os criados não estão em casa.
   - Creio que sim - respondi eu.
   - Certamente - acrescentou meu pai -, sem sombra de dúvida.
   - Deveríamos ir agora? - perguntou minha mãe.
   - Quanto antes melhor - respondeu ele.
-   Ah! Não percamos tempo - exclamei.
Assaltou nosso ouvidos uma terceira pancada, mais violenta do que nunca.
   - Estou certa de que alguém está batendo à porta - disse minha mãe.
   - Creio que só pode ser esse o caso - retrucou meu pai.
   - Julgo que os criados já retornaram - afirmei. - Tenho a impressão de ouvir Mary se dirigindo até a porta.
   - Fico contente - exclamou meu pai -, pois anseio por saber quem é.
Eu tinha razão em minha conjectura, pois Mary, entrando naquele instante na sala, informou-nos de que se encontravam à porta um jovem cavalheiro e seu criado, os quais, perdidos em seu caminho, estavam com muito frio e pediam licença para se aquecerem junto ao nosso fogo.
   - Não vai recebê-los? = perguntei.
   - Tem alguma objeção, minha querida? - disse meu pai.
   - Nenhuma neste mundo - respondeu minha mãe.
   Mary, sem esperar ordens adicionais, deixou de pronto a sala e depressa retornou, introduzindo ali o jovem mais formoso e amável que eu jamais contemplara. O criado ela manteve para si.
   Minha natural sensibilidade já se vira em grande grau afetada pelos sofrimentos do desafortunado estranho, e, tão logo comecei a contemplá-lo, senti que dele a felicidade ou a desgraça de minha vida futura por certo dependeria.
   Adieu,
Laura


CARTA SEXTA
Laura para Marianne

O nobre jovem nos informou de que seu nome era Lindsay - por razões particulares, entretanto, haveria de ocultá-lo aqui sob o nome Talbot. Contou-nos que era filho de um baronete inglês, que sua mãe por muitos anos deixara de existir e que ele tinha uma irmã de tamanho médio.
   - Meu pai - continuou ele - é um canalha mesquinho e mercenário... somente aos mais especiais amigos, como este querido grupo, eu assim delataria suas falhas. As suas virtudes, meu amável Polydore - (dirigindo-se a meu pai) -, as suas, cara Claudia, e as suas, minha encantadora Laura, induzem-me a depositar em vocês minha confidência.
   Fizemos uma mesura.
   - Meu pai, seduzido pelo falso brilho da fortuna e pela ilusória pompa dos títulos, insistiu que eu desse minha mão para Lady Dotothea. Não, nunca, exclamei eu, Lady Dorothea é adorável e cativante; mas prefiro nenhuma mulher a ela; mas saiba, senhor, que desprezo a ideia de me casar com ela em conformidade com seus desejos. Não! Jamais alguém dirá que fiz a vontade do meu pai.
   Todos admiramos a nobre virilidade de sua réplica. Ele continuou:
   Sir Edward ficou surpreso; talvez mal esperasse encontrar tão fogosa oposição a seu arbítrio. "De onde, Edward, por tudo que é mais espantoso", disse ele, "você tirou essa algaravia sem sentido? Você andou lendo romances, eu suspeito." Com desprezo, nem mesmo retruquei: teria dalgo abaixo de minha dignidade. Montei meu cavalo e, seguido por meu fiel William, tomei o rumo de minha tia. A casa de meu pai fica localizada em Bedfordshire, e a de minha tia em Middlesex e, embora eu assuma com lisonja ser dotado de tolerável proficiência em geografia, não sei como aconteceu, mas me vi entrando neste belíssimo vale, o qual constato ser situado no sul de Gales, quando imaginava ter chegado ao lar de minha tia. Depois de ter vagado por um tempo nas margens do Usk sem saber qual caminho seguir, comecei a lamentar meu cruel destino da maneira mais amarga e mais patética. Agora estava perfeitamente escuro, sequer uma estrela se fazia visível para orientar meus passos, e não sei o que poderia ter me acontecido não tivesse eu, por fim, discernido por entre o solene breu que me cercava uma luz distante, a qual, mediante aproximação, descobri ser o alegre fulgor desta lareira. Impelido pela combinação de infortúnio sob os quais eu labutara, a saber medo, fome e frio, não hesitei em pedir admissão, que por fim ganhei, e agora, minha adorável Laura - continuou ele, tomando minha mão -, quando poderei ter a esperança de receber a recompensa para todos os sofrimentos dolorosos enfrentados por mim durante o transcurso do meu afeto por você, ao qual desde sempre aspirei? Ah! Quando me recompensará consigo mesma?
   - Neste instante, querido e amável Edward - retruquei eu. Fomos imediatamente unidos por meu pai, que, embora nunca tivesse sido ordenado, fora criado com vistas à Igreja.
   Adieu,
Laura

CARTA SÉTIMA
Laura para Marianne

Não permanecemos no Vale de Usk senão por poucos dias após nosso casamento. Depois de dar um emocionante adeus a meu pai, minha mãe e minha Isabel, acompanhei Edward até a casa de sua tia em Middlesex. Philippa recebeu a nós dois com todas as manifestações de amor afetuoso. Minha chegada foi de fato uma surpresa agradabilíssima para ela, pois não só se encontrava na mais completa ignorância quanto a meu casamento com seu sobrinho, como nunca sequer tomara o menor conhecimento da existência de tal pessoa no mundo.
Augusta, a irmão de Edward, estava visitando-a quando chegamos. Julguei-a como sendo exatamente tal qual seu irmão a descrevera - de tamanho médio. Ela me recebeu com a mesma surpresa - mas não com a mesma cordialidade - de Philippa. Havia, em sua recepção a mim, uma frieza desagradável e uma reserva proibitiva que eram igualmente perturbadoras e inesperadas. Nos modos dela e na postura para comigo, naquele primeiro encontro, nenhuma dose de interessante sensibilidade ou amável simpatia teriam distinguido nossa apresentação uma à outra. Sua linguagem não era nem calorosa, nem afetuosa; suas expressões de deferência não eram nem animada, nem cordiais; seus braços não se abriram para me receber em seu coração, embora os meus tenham sido estendidos para pressioná-la junto ao meu.
   Uma sucinta conversação entre Augusta e seu irmão, acidentalmente ouvida por mim, intensificou minha aversão por ela e me convenceu de que seu coração não era mais formado para os laços brandos do amor do que para o terno intercurso da amizade.
   - Mas você crê que meu pai algum dia irá se conformar com essa união imprudente? - perguntou Augusta.
    - Augusta - disse o nobre jovem -, eu pensava que sua opinião a meu respeito seria melhor, sendo-lhe impossível imaginar que eu poderia me desagradar tão abjetamente a ponto de considerar a concordância de meu pai em qualquer um de meus assuntos, sejam eles importantes ou do meu interesse. Diga-me, Augusta, com sinceridade: alguma vez me viu consultando as inclinações dele ou seguindo seu conselho na mais banal das insignificâncias desde meus quinze anos de idade?
   - Edward - respondeu ela -, sem dúvida se mostra acanhado demais no louvor a si mesmo. Desde os quinze anos, apenas? Meu caro irmão, concedo-lhe total absolvição, desde os seus cinco anos de idade, de jamais ter contribuído voluntariamente para a satisfação de seu pai. Mesmo assim, não descarto meus receios de que você possa ser obrigado, dentro em breve, a degradar-se perante seus próprios olhos procurando sustento para sua esposa na generosidade de Sir Edward.
   - Jamais, Augusta, jamais me rebaixarei tanto - disse Edward. - Sustento! De quais sustentos Laura irá precisar que não possa receber de mim?
   - Somente os sustentos muito insignificantes de mantimentos e bebida - respondeu ela.
   - Mantimentos e bebida! - exclamou meu marido de modo desdenhoso e muitíssimo nobre.
   - E imaginas tu, então, não existir outro sustento para uma mente exaltada (como no caso de minha Laura) do que o mesquinho e indelicado emprego de comida e bebida?
- Nenhum quem eu conheça como tão eficaz - devolveu Augusta.
   - E você nunca sentiu, então, as aprazíveis dores do amor, Augusta? - disse meu Edward. - Acaso parece impossível, para seu vil e corrompido paladar, substituir com amor? Não consegue conceber o luxo de viver todas as aflições que a pobreza pode infligir na companhia do objeto de seu mais terno afeto?
   - Você é ridículo demais - disse Augusta - para discutir comigo. Entretanto, talvez com o tempo acabe convencido de que...
   Nesse instante, fui impedida de ouvir o restante de sua fala pelo aparecimento de uma jovem muito bem-apessoada, introduzida no recinto pela porta junto à qual eu estivera escutando. Ao ouvir seu nome ser anunciado como "Lady Dorothea", de pronto abandonei meu posto e a segui rumo à sala, pois eu bem lembrava tratar-se da dama oferecida como esposa para meu Edward pelo cruel e implacável baronete.
   Conquanto a visita de Lady Dorothea visasse nominalmente a Philippa e Augusta, tenho certa razão para imaginar que (inteirada do casamento e da chegada de Edward) me ver era um motivo principal de sua vinda.
   Logo percebi que, embora adorável e elegante em sua pessoa e embora afável e polida em seu trato, ela pertencia, no tocante a delicada emoção, ternos sentimentos e refinada sensibilidade, à categoria inferior de criaturas da qual Augusta era integrante.
   Não permaneceu senão pro meia hora e, no decurso de sua visita, nem me confidenciou qualquer um de seus pensamentos secretos, nem solicitou a mim que lhe confidenciasse qualquer um dos meus.    Portanto, você poderá imaginar com facilidade, minha querida Marianne, que não pude sentir qualquer afeição ardente ou muito sincero apego por Lady Dorothea.
   Adieu,
Laura


CARTA OITAVA
Laura para Marianne, em continuação

Lady Dorothea mal havia nos deixado quando outro visitante, tão inesperado quanto sua senhoria, foi anunciado. Era Sir Edward, o qual, informado por Augusta quanto ao casamento do irmão, viera sem dúvida repreendê-lo por ter ousado unir-se a mim sem seu conhecimento. Edward, porém, antevendo seu desígnio, aproximou-se do pai com heroica fortitude tão logo este adentrou a sala e dirigiu-se a ele da seguinte maneira:
   - Sir Edward, sei qual é o motivo de sua viagem para cá... O senhor chega com o abjeto desígnio de me repreender por ter ingressado em indissolúvel enlace com minha Laura sem seu consentimento. Mas, senhor, vanglorio-me do ato. É a maior de minhas jactâncias o fato de que provoquei o desgosto de meu pai!
   Assim falando, tomou minha mão e, enquanto Sir Edward, Philippa e Augusta sem dúvida refletiam com admiração sobre sua impávida bravura, levou-me daquele aposento direto à carruagem de seu pai, ainda estacionada junto à porta, na qual fomos instantaneamente transportados para longe da perseguição de Sir Edward.
   Os postilhões haviam recebido ordem, a princípio, de seguir pela estrada de Londres; tão logo havíamos refletido em medida suficiente,no entanto, ordenamos-lhes que tocassem para M**, morada do mais íntimo amigo de Edward, distante poucas milhas.
   A M** chegamos dentro de poucas horas e, mandando anunciar nossos nomes, fomo admitidos de imediato ao encontro de Sophia, esposa do amigo de Edwar. Depois de ter sido privada de uma verdadeira amiga (pois assim denomino, Marianne, a sua mãe) durante o decurso de três semanas, imagine meu arrebatamento na contemplação de outra, muito genuinamente digna do nome. Sophia alçava-se um tanto acima do tamanho médio, muitíssimo elegante nas proporções. Um suave langor disseminava-se por suas feições adoráveis, intensificando-lhes, porém, a beleza. Era a característica de sua mente: ela era toda emoção e sensibilidade. Voamos aos braços uma da outra e, tendo trocado votos de amizade recíproca para o resto de nossas vidas, no mesmo instante desvelamos uma à outra os mais escondidos segredos de nossos corações. Fomos interrompidas na deliciosa ocupação pela entrada de Augustus (o amigo de Edward), recém-retornado de uma perambulação solitária.
   Nunca em minha vida testemunhei tão comovente cena como a do encontro de Edward e Augustus.
   - Minha vida! Minha alma! - exclamou o primeiro.
   - Meu anjo encantador! - disse o segundo, enquanto se jogavam um nos braços do outro.
   Era patético demais para os sentimentos de Sophia e os meus - desmaiamos alternadamente num sofá.
   Adieu,
Laura


CARTA NONA
Da mesma para a mesma

Mais pra o fim do dia, recebemos a seguinte carta de Philippa:

   Sir Edward encontra-se imensamente inflamado por sua partida abrupta; levou Augusta de volta para Bedfordshire. Por mais que eu deseje desfrutar outra vez de sua deleitável companhia, não consigo tomar a resolução de arrancá-lo de onde está, em meio a tão queridos e meritórios amigos. Quando sua visitação a eles estiver terminada, você irá retornar, confio, aos braços de sua
Philippa


Retribuímos com uma resposta adequada a esse bilhete afetuoso, e, depois de agradecer-çhe por seu gentil convite, asseguramos-lhe de que certamente haveríamos de nos valer dele quando quer que nos ocorresse não ter outro lugar para ir. Embora com certeza nada pudesse ter parecido mais satisfatório a qualquer criatura razoável do que tão grata réplica a seu convite, mesmo assim, não sei como, mas ela certamente se mostrou caprichosa o bastante para ficar descontente com nosso comportamento e, passadas poucas semanas, fosse para se vingar de nossa conduta ou para aliviar sua própria solidão, casou-se com um jovem e iletrado caçador de dotes. Esse passo imprudente (embora tivéssemos noção de que provavelmente nos deixaria privados do dote que Philippa sempre nos permitiria esperar) não pôde, segundo nós mesmo admitimos, extrair de nossas mentes exaltadas um único suspiro; contudo, temerosa de que tal passo pudesse provar ser fonte de interminável infelicidade à noiva iludida, nossa trêmula sensibilidade viu-se em grande grau afetada quando recebemos a primeira informação do acontecimento. As súplicas afetuosas de Augustus e Sophia no sentido de que para sempre considerássemos sua casa como nosso lar nos persuadiram facilmente a determinar que nunca mais haveríamos de abandoná-los.
Na companhia de meu Edward e desse amável par, passei os mais felizes momentos de minha vida; nosso tempo era passado da mais deleitável maneira, em mútuos protestos de amizade e em votos de amor inalterável, dos quais éramos protegidos de qualquer interrupção por parte de intrometidos e desagradáveis visitantes, pois Sophia e Augustus haviam tomado, no instante inicial de seu ingresso na vizinhança, o devido cuidado de informar às famílias circundantes, que, como sua felicidade centrava-se de todo em si mesmo, não desejavam outra companhia.
Porém, ai de mim!, minha querida Marianne, tamanha felicidade como então desfrutada por mim era perfeita demais para ser duradoura. Um golpe muitíssimo severo e inesperado destruiu de uma só vez todas as sensações de prazer. Por tudo que já lhe contei a respeito de Augustus e Sophia, convencida como você deve estar de que jamais houve casal mais feliz, imagino nem precisar lhe informar de que a união dos dois havia contrariado as inclinações de seus cruéis e mercenários pais, os quais haviam empenhado esforços, em vão, com obstinada perseverança, para forçá-los ao casamento com aqueles a quem tinham sempre abominado; porém, com fortitude heroica e digna de ser relatada e admirada, ambos haviam constantemente se recusado a ceder a tão despótico poder.
Depois de terem com muita nobreza se desembaraçado dos grilhões da autoridade parental por meio de um casamento clandestino, os dois determinaram-se jamais abrir mão da boa opinião que assim agindo haviam conquistado no mundo aceitando quaisquer propostas de reconciliação que pudessem lhes ser oferecidas por seus pais - a essa provação adicional de sua nobre independência, entretanto, eles nunca se viram expostos.
Não estavam casados senão por poucos meses quando nossa visitação a eles começou, tempo esse durante o qual haviam sido amplamente sustentados por uma confortável soma de dinheiro, furtada graciosamente por Augustus da escrivaninha de seu indigno pai alguns dias antes de sua união com Sophia.
Com nossa chegada, suas despesas aumentaram em considerável medida, embora seus meios para supri-las estivessem então quase esgotados. Mas os dois, exaltadas criaturas!, desprezavam a hipótese de refletir sequer por um momento  sobre suas aflições pecuniárias, e teriam corado perante a ideia de pagar suas dívidas. Ai deles!, qual foi a recompensa por tão desinteressado comportamento? O belo Augustus foi preso, e todos nós ficamos arruinados. Tal pérfida traição por parte dos impiedosos perpetradores do feito chocará sua meiga índole, queridíssima Marianne, tanto quanto afetou, na ocasião, as delicadas sensibilidades de Edward, de Sophia, de sua Laura e do próprio Augustus. Para completar tão incomparável barbaridade, fomos informados de que uma execução legal teria lugar dentro em breve. Ah! O que poderíamos fazer, afora o que fizemos? Suspiramos e desmaiamos no sofá.
   Adieu,
Laura


CARTA DÉCIMA
Laura em continuação

Quando nos vimos em certa medida recuperados das efusões avassaladoras de nosso pesar, Edward desejou que considerássemos qual seria o passo mais prudente a tomar em nossa infeliz situação enquanto ele seguisse ao encontro de seu amigo aprisionado para prantear seus infortúnios. Prometemos que faríamos isso, e ele partiu em sua jornada rumo à cidade. Durante sua ausência, fielmente cumprimos seu desejo e, após a mais madura deliberação, por fim concordamos que a melhor coisa que poderíamos fazer seria sair de casa, da qual esperávamos que os oficiais de justiça tomassem posse a qualquer momento.
Aguardamos com a maior impaciência, portanto, pelo retorno de Edward de modo a lhe comunicar o resultado de nossas deliberações. Nenhum Edward apareceu, no entanto. Em vão contamos os tediosos momentos de sua ausência - em vão choramos - em vão suspiramos - Edward algum retornou. Era um golpe cruel demais, inesperado demais a nossa meiga sensibilidade - não nos era possível suportá-lo - só nos era possível desmaiar. Por fim, reunindo a máxima resolução de que eu era soberana, levantei-me e, após embalar algum vestuário necessário a Sophia e a mim, arrastei-a para uma carruagem solicitada por mim e no mesmo instante partimos para Londres. Como s habilitação de Augustus se situava a doze milhas da cidade, não demorou muito para chegarmos lá, e, tão logo havíamos adentrado Holbourn, baixei um dos vidros frontais para perguntar a todas as pessoas de aparência decente pelas quais passávamos: "Por acaso viu meu Edward?"
Porém, como avançávamos depressa demais para lhes permitir que respondessem a minhas repetidas indagações, obtive pouca, ou, com efeito, nenhuma informação a respeito dele.
- Para onde devo seguir? - perguntou o postilhão.
- Para Newgate, gentil jovem - respondi - para vermos Augustus.
- Ah!, não , não - exclamou Sophia -, não posso ir para Newgate; não serei capaz de suportar a visão de meu Augustus em tão cruel confinamento... meus sentimentos já foram suficientemente abalados pela narração de seus tormentos, e contemplá-los haverá de subjugar minha sensibilidade.
Uma vez que concordei perfeitamente com ele na justiça de tais sentimentos, o postilhão foi orientado de pronto a retornar para o campo.
Talvez você fique um tanto surpresa, minha queridíssima Marianne, na constatação de que durante a aflição enfrentada por mim, destituída de qualquer apoio e desprovida de qualquer habitação, eu não tenha me lembrado sequer uma vez de meu pai, minha mãe ou meu chalé paterno no Vale de Usk. Para explicar esse aparente esquecimento, devo informá-la de uma circunstância insignificante a respeito deles que ainda não mencionei. A morte de meus pais poucas semanas após minha partida é a ciscunstância à qual me refiro. Com seus falecimentos, tornei-me a herdeira legal de sua casa e fortuna. Porém, ai de mim!, a casa jamais havia sido deles, e a fortuna não passara de uma anuidade vitalícia. Tal [e a depravação do mundo! Ao encontro de sua mãe eu teria retornado com prazer, a ela eu teria com satisfação apresentado a minha encantadora Sophia, e na estimada companhia delas eu teria com alegria passado a porção restante de minha vida no Vale de Usk, não fosse a intervenção de um obstáculo è execução de tão agradável plano: o casamento e afastamento de sua mãe para uma região distante da Irlanda.
Adieu,
Laura


Jane Austen, Amor eAmizade & outras histórias,  L&PM Pocket, livro de bolso, Tradução de Rodrigo Breunig, Prefácio de G.K. Chesterton.

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