domingo, 8 de agosto de 2010

Clarice Lispector - Correspondências



Nova York, 10 de junho de 1946
"Clarice,
Esta é a quarta carta que inicio para responder a sua. A primeira eu deixei no Brasil, só trouxe a primeira página, que vai junto. A segunda eu rasguei. A terceira eu não acabei, vai junto também. Hoje recebi uma carta do Paulo, dizendo que não tinha mandado até agora a resposta dele. Positivamente somos uns cachorros irremediáveis. Você por favor não ligue para isso não. Pode ter certeza de que não te esquecemos." (...)

Fernando Sabino

Nova York, 17 de setembro de 1946
Clarice,
(...)"Como eu já disse, gostei muito do seu conto: admiravelmente bem escrito, não falta nada nem sobra nada. Se permite duas ou três sugestões: onde você fala primeira vez que o homem carregava um saco, sugiro que diga saco de linhagem, ou de pano etc... "... tirou a pá do saco" me soa desagradável. Parece que não há mais nada. É em verdade um conto tão bonito, Clarice, um conto que só se escreveria na Europa, na Suíça. Por ele posso perceber uma coisa muito importante do conto: que você está escrevendo bem, com calma, estilo seguro, sem precipitação. Talvez porque agora você já não esteja sofrendo muito: o que é preciso é sofrer bem: é uma diferença bem importante, para a qual o Mário sempre me chamava a atenção. A gente sofre muito: o que é preciso é sofrer bem, com discernimento, com classe, com serenidade de quem já é iniciado no sofrimento. Não para tirar dele uma compensação, mas um reflexo. É o relexo disso que vejo no seu conto, você procura escrever bem, e escreve bem. Me deu vontade de enunciar um trísmo: "O problema para quem escreve é antes de tudo um problema literário." Álvaro Lins.

Fernando Sabino

Correspondências inclui 129 cartas, que cobrem quatro décadas da vida de Clarice, dos anos 1940 até pouco antes da morte da autora, ocorrida no Rio de Janeiro em 1977. Entre seus correspondentes estão o marido, Maury Gurgel Valente, os amigos Lúcio Cardoso, Bluma Wainer e Fernando Sabino, com com manteve uma rica e frutuosa correspondência, até trocas mais pontuais.

Berna, 19 de junho de 1946 - quarta-feira
Fernando,
Sua carta me surpreendeu tanto! Eu tive a impressão de ter caído numa coisa assim: de jogar verde para colher maduro ou de ir buscar lã tosquiada, ou dois e dois são quatro - eu escrevi para vocês no Rio, na sua casa, e você me responde de Nova York.

Clarice

Berna, 13 de outubro de 1946
Fernando,
(...)"Talvez seja orgulho querer escrever, você às vezes não sente que é? A gente deveria se contentar em ver, às vezes. Felizmente tantas outras vezes não é orgulho, é desejo humilde. Enquanto isso, estou me divertindo tanto quanto você não pode imaginar: comecei a fazer uma "cena" (não sei dar o nome verdadeiro ou técnico); uma cena antiga, tipo tragédia idade média, com... coro, sacerdote, povo, esposo, amante..."

Clarice

As cartas eram o contacto de Clarice com o mundo e a necessidade de se manter viva. Por este motivo Clarice dava ênfase a sua necessidade de respostas. Verdadeiros poemas ao longo da ordem cronológica que o livro Correspondências vai sendo apresentado pode ser captado o crescimento interior de Clarice, como a paciência foi um mestre em sua vida de eterna poesia e carinho com o próximo. O livro é um retrato da trajetória biográfico-literária, do contexto cultural e sociopolítico da época atingido através de sua correspondência com escritores, artistas, intelectuais e familiares, seus amigos.

Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik, pequena cidade da Ucrânia, e chegou ao Brasil aos dois meses de idade, naturalizando-se brasileira posteriormente. Criou-se em Maceió e Recife, transferindo-se aos dozes anos para o Rio de Janeiro, onde se formou em Direito, trabalhou como jornalista e iniciou sua carreira literária. Viveu muitos anos no exterior, em função do casamento com um diplomata brasileiro, teve dois filhos e faleceu em dezembro de 1977.

Encerro com Sabino e o interessante texto:

"Só de pensar que você estará lendo esta carta muitos dias depois de ter sido escrita me dá vontade de não mandar. Mas mando, isso é uma desonestidade. Você nos escreveu há um mês. Juro que não faço mais isso, fiz só da primeira vez, agora não faço mais. Me escreva que responderei imediatamente. Como vai indo o seu livro? O que é que você faz às três horas da tarde? Quero saber tudo, tudo. Você tem recebido notícias do Brasil? Alguém mais escreveu sobre o seu livro? É verdade que a Suíça é muito branca? Você mora numa casa de dois andares ou de um só? Tem cortina na janela? Ou ainda está num hotel? Oh, meu Deus, Seminarstrasse será simplesmente um hotel? Qual é o cigarro que você está fumando agora? Pipocas, Fernando (14)!"

14 - Referência a sua predileção por pipocas, que a levou um dia a me assustar com esta incontida exclamação de alegria infantil, ao passarmos no meu carro em Copacabana diante de um pipoqueiro.

Demais!

Lispector, Clarice, 1920-1977 - Correspondências / Clarice Lispector; organização de Teresa Montero - Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

8 comentários:

  1. Primeiro feliz dia dos pais e segundo como é bom ler Clarice, seja onde for, como é rica sua literatura.

    Bjs!

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  2. Poeta Mauro Rocha,

    Que esta data seja duplicada, rsrs
    Ah, Clarice é um amor!

    Beijos!

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  3. Menina, com certeza ler um livro que fala de cartas dá um pouco de nostalgia, pois uma carta daquele tempo levaria o que? Dois ou mais meses?

    E o pessoa fica esperando com paciência e respondia cada carta, ao contrario de nós que queremos respostas rapidas e nem sempre respodemos de volta.

    Fique com Deus, senhorita Lígia.
    Um abraço.

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  4. Amo esse livro, Lígia.

    Beijo de volta das férias.

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  5. Obrigada por sua visita. Vim aqui retribui-la e encontro-me maravilhada em respirar tanta literatura.
    Beijos meus

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  6. Cláudia Figueiredo,

    Seja bem-vinda! Agradeço a visita gentil.
    Beijos!

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  7. Daniel Savio,

    Obrigada pela visita e comentário.
    Clarice já é eterna.

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  8. Dade Amorim,

    Amo esse livro, rsrs.
    Brilhante idéia!
    Excelente forma de Clarice para se comunicar com os amigos do exterior.
    Beijo, querido.

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