quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Clarice Lispector - Laços de Família

 Teia da Vida

A aranha traça na sua teia
Seu destino, o seu alimento
O seu condimento e o sabor da vida
Que na teia ela destina

O pescador no mar
Traça na rede de pesca,
O seu futuro, a sua fé,
A sua amizade
e o seu mar de felicidade
Que no barco ele desvia da tristeza
e acerta na alegria de viver
E toda a sua beleza"

(Carla Guedes - Imaginária Flor, 1999)


Um dia vi minha filha demoradamente observar uma aranha.  A aranha era sua presa naquele dia. A vida queria seguir seu curso contemporâneo mas tudo parecia parar naquela cena. Rendida, um caderno a partir daquele dia teria um lugar para encontro de letras, seja flor, seja aranha, seja mar. Assim, surgiu o primeiro livro de poemas de Carla Guedes (à direita, na foto acima, ao lado dos irmãos Lis/esquerda, Victor/esquerda e Davi), 'Imaginária Flor', editado aos 10 anos. No prefácio a autora relata: "a vida, as flores, o amanhecer me inspiram.".

Em  "Laços de Família", Clarice Lispector aborda através da literatura como bússola pela essência humana a desvendar as profundezas da alma. Utiliza o cotidiano revelado nos personagens na iminência de um milagre, uma explosão ou uma singela descoberta. Todos suscetíveis aos acontecimentos do dia a dia. Vidas que se perdem e se encontram em labirintos formados por uma linguagem única, meticulosamente estruturada, de caráter profundo e universal.

"Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O mínimo corpo  tremia. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d´água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um laod para outro na cozinha, cortanto os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos."

Com vocabulário simples, o leitor que não se engane ao ser surpreendido com pequenos detalhes do cotidiano deflagando o entrechoque de mundos e fronteiras, desnudando um ambiente falsamente estável, em que vidas aparentemente sólidas se desestabilizam de súbito, justo quando o dia a dia parece estar sendo marcado pela ameaça de nada acontecer.


"Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade.
E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia." 


Lispector, Clarice, 1925-1977 - Laços de família: contos / Clarice Lispector. - Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

Um comentário:

  1. Só por ser cotidiano não quer dizer que não exista um tesouro precioso...

    Fique com Deus, senhorita Lígia.
    Um abraço.

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