terça-feira, 9 de março de 2010

Clarice Lispector / A Hora da Estrela

"Grito puro e sem pedir esmola. Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás - descubro eu agora - também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas."

Clarice Lispector; A Hora da Estrela - Rocco

Não sinto vontade de falar de Macabéa. Não por não querer adentrar nesta história tão simples, mas essencialmente profunda por se tratar de alma feminina. Talvez não estejamos preparados para encarar Macabéa face a face. O próprio autor criador de Macabéa gastou boas letras na iniciação, prevenção de que Macabéa poderia ter vida. Quanto mais ele adiou este encontro mais Macabéa se fez presente. Alertou sobre Macabéa, isto bem o fez. Macabéa revira a alma, gera sensações contraditórias. Não que Macabéa queira se fazer presente. Macabéa não sabe de sua existência assim como um avatar. Quanto mais Macabéa ganha vida, maior sua possibilidade de morte. Macabéa gera sentimentos contraditórios em quem a lê. Macabeá inspira sentimentos adormecidos e um deles pode ser a raiva. Sentir raiva da indiferença de Macabéa pode ser o início de seu fim. Sob este ponto de vista a morte de Macabéa pode ter sido um alívio. Ainda não li o livro todo. Construí seu perfil sob a maravilhosa voz que contém o CD que acompanha o livro "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector. Tem voz feminina no CD, pequena introdução assim, para não passar em branco, Maria Beta-
nia, mas não tão importante quanto a narrativa masculina, por certo, que faz todo o percurso de Macabéa com firmeza de tom. Resolvi terminar a resenha de Macabéa sem ler o livro. Se pelo menos os livros tivessem uma página em branco entremeando as escritas quem sabe Macabéa teria 50% de chance de felicidade. Esperança de que seria mudada a história a revelia da vontade do autor. Quanto a minha escrita seria fatalmente atraída pela máquina de escrever. Ali tem o início da história de Macabéa que procurou um destino diferente através daquela máquina. Consigo imaginá-la antiga, teclas aredondadas, macia. Consigo imaginar Macabéa em devaneio, quase boquiaberta a admirar a máquina, perceber o carro leve a diferenciar de suas pesadas mãos. Uma quase alegria, parecendo o brinquedo que não tivera na infância. Sobe, desce, desliza, o carro da máquina a fazer um leve som. Datilografar se tornara prazeroso. A escolha dos espaços, tudo medido, observado. O tocar dos dedos nas teclas macias, o afundar das letras dando forma, marcando presença no branco papel. Macabéa sempre tivera curiosidade pelas letras, se interessava por seu significado. Eram possibilidades que surgiam. Turbilhões de palavras poderiam surgir. Era um mundo interior externado através daquela simples máquina.

"A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique."
(A Hora da Estrela - Clarice Lispector)

Faltavam palavras a Macabéa, um amigo dissera certa vez e tinha razão. Macabéa não saberia expressar em palavras o turbilhão interior que a preenchia. "Deus é o mundo.", afirma Clarice. Quem sou eu para discordar. Quem é Macabéa para compreender.

"Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?"
(A Hora da Estrela - Clarice Lispector)

Há algum tempo comecei uma postagem sobre um livro de Hermann Hesse, "O Lobo da Estepe", que aguarda conclusão. Olho para Macabéa e algum aspecto de "Demian" se faz presente. Hermann Hesse que muito lembra Clarice. Talvez seja o contrário. Clarice moldou Macabéa com algum barro de "Demian".

"As palavras engenhosas não têm qualquer valor, absolutamente nenhum. Só conseguem afastar-nos de nós mesmos. E afastar-se de si mesmo é um pecado. É preciso que se saiba encerrar-se em si mesmo, como a tartaruga."
(Hermann Hesse - Demian)

"Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros: começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim. Não é agradável a minha história, não é suave e harmoniosa como as histórias inventadas; sabe a insensatez e a confusão, a loucura e sonho, como a vida de todos os homens que já não querem mais mentir a si mesmos."
(Hermann Hesse - Demian)

"Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia para quê, não se indagava. Quem sabe, achava que havia uma gloriazinha em viver. Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz. Então era. Antes de nascer ela era uma idéia? Antes de nascer ela era morta? E depois de nascer ela ia morrer? Mas que fina talhada de melancia."
(A Hora da Estrela - Clarice Lispector)

"Há poucos fatos a narrar e eu mesmo não sei ainda o que estou denunciando.
Agora (explosão) em rapidíssimos traços desenharei a vida pregressa da moça até o momento do espelho do banheiro."

(A Hora da Estrela - Clarice Lispector)

Resolvi encerrar por hora. Poderia escrever sobre Macabéa por longas horas. Talvez pela capacidade de ir criando personagens que possam ter convivido com Macabéa. Não digo adeus a Macabéa. Um até breve. Macabéa vive em cada moça que nada pediu da vida além de vencer o fim de cada dia sem grandes preocupações: recortar notícias em jornais, uma simples refeição. Macabéa conseguiu manter-se íntegra em sua simplicidade. Feliz em acreditar no próximo até o minuto final, sorrir em meio ao desespero. Até breve!

4 comentários:

  1. Feliz dia das mulheres!!

    E você vai dizer:”Mais foi dia na segunda dia oito!!”

    Então eu vou dizer que fiz de propósito, pois para mim todos os dias são das mulheres, que se dedicam, que cuidam, que se cuidam, que são mães, esposas, amantes, companheiras e que nunca serão esquecidas e por mais que tenha um dia para representar um marco na história, têm todos os dias para serem comemorados por homens e pessoas que respeitam e admiram a mulher.

    Um abraço !!

    PS:Adoro Clarice!!

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  2. Em Portugal, infelizmente, é difícil encontrar qq obra dela.
    Mas, ouvi dizer que uma editora vai pôr mãos à tarefa...

    Um beijo e sê bem vinda lá no GRIFO PLANANTE.

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  3. João Menéres, Grifo
    Planante, seja muito bem-
    vindo neste singelo espaço onde
    NOS TODOS LEMOS.
    Um beijo.

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