sábado, 2 de outubro de 2010

Filipa Melo - Este é o meu corpo


Este é o meu corpo / Filipa Melo.
 - São Paulo : Editora Planeta do Brasil, 2004. - (Tanto mar;1)

"Este é um monólogo disfarçado de conversa. Um diálogo morto.
Não tenho ilusões. Entendo a minha loucura mascarada pelo delírio da morte nos corpos que corto. A morte é um diabo louco numa dança macabra dentro dos corpos. É com ela que eu falo: numa conversa de loucos.
Segundo dizem, para a morte e para o sol não se olha de frente. Por isso continuo, cego, a olhá-la. A olhar-me nela. A olhar-te. Cego e louco."

Numa cidade de província, noite escura, enquanto a água fustiga as pedras nas margens do rio, é encontrado um corpo virado do avesso, irreconhecível, sem formas e sem rosto, ao mesmo tempo belo e repugnante.

"Quando o homem se aproximou da ponte, já o cão rodeava o cropo. Cheirava-o, roçando o focinho nas carnes, veias e ossos que pareciam triturados. Conservavam os contornos intactos. Estendiam-se em duas pernas, dois braços, um tronco e uma cabeça de borco entre o passeio e o alcatrão. Não havia nem olhos, nem cara, nem roupas. No meio da carne rosácea, os tendões desenhavam linhas brancas, cruzadas por músculos finos, tensos e escuros. A pele parecia ter sido sugada por um violento remoinho que a puxara para dentro, retorcida como um trapo velho, seca como um pergaminho."

"Hesito. Confesso que tento manter no discurso a pose distante de quem te observa de fora. Comporto-me como um apaixonado e apercebo-me novamente disso. Tento cativar-te. A ti, imagina, estendida, esventradada à minha frente, rodeada da luz crua das lâmpadas fluorescentes e dos reflexos baços dos azulejos. O cenário é tudo menos romântico e eu ficciono-o para te poupar à crueza dos meus gestos.
Mas é verdade. Abro-te para te extrair os segredos e te deixar partir.
O meu corpo responde também. Sinto as mãos húmidas dentro das luvas, a testa quente, a boca áspera, depois inundada pela saliva, que engulo em pequenos goles. Quero deixar as formalidades e gritar-te que preciso que me ajudes.
Ajuda-me.
Regresso à técnica e acalmo-me.

"Este é o meu corpo" é um livro para ser relido. Estranho se considerado o tema, um livro de suspense, portanto avesso a releituras mas especialmente na delicada forma de abordagem do tema se torna um livro surpreendente. Revela os mistérios de um assassinato de forma poética, através do olhar de um médico legista. Com a solenidade exigida a um ato religioso, com a ternura de uma carícia, esse corpo será desvelado através dos cortes profundos do bisturi de um médico-legista obcecado com os segredos que lhe contam os mortos. "Todas as mortes são violentas. Sobretudo para os que cá ficam", diz ele. E é também dos reflexos desta morte na vida dos que ficam que trata este romance, puzzle de muitos corpos e das marcas da vida e da morte dentro deles. Porque o corpo humano encerra os mais intangíveis mistérios. Este é o meu corpo arrasta-nos para uma viagem apaixonante ao fundo de nós mesmos, transportados pelo estilo claro, profundo e cirúrgico de uma autora que promete deixar marcas na nova literatura portuguesa.

"Mas as palavras não querem dizer nada. As palavras não chegam. Eu só tenho as palavras.
São elas que, neste momento, te transformam em apenas mais um corpo. Que te reduzem ao mistério.
Eu não sei nada. Nem de ti, nem da morte que te estancou as feridas e se prepara para as reduzir a pó. Nem da vida que deixaste para trás.
Alguém ficou de ti. Confirmo-o agora.
Alguém que antes não era e que, quando morrer, nunca mais voltará a existir.
Alguém que, como eu, te procurará por entre os despojos de ti, e que saberá encontrar-te, e desvendar os teus sinais."

"Ninguém nasce duas vezes. Conheço a nossa individualidade composta de carne e sangue. Manobro a sua evidência na mesa de autópsias. Nascemos de uma só maneira, morremos segundo fórmulas infinitas. É a direcção que seguimos entre as duas etapas o que as estreita ou separa. O que nos destina a sobrevivermos na memória dos outros como um exemplar vivo ou um espécime morto. E a encerrarmos as nossas contas com eles.
Não existem f´romulas para a vida. Em vão desejamos herdá-las. Em vão ansiamos fazer delas um legado. Em vão."

Filipa Melo nasceu em 1972, em Angola, na cidade de Silva Porto (atual Cuito) e vive em Portugal desde os dois anos de idade. Desde 1992, desenvolve suas atividades como jornalista. Este é o meu corpo é seu primeiro romance, já publicado na França, na Espanha e na Itália.

4 comentários:

  1. Parece ser um bom livro, mas fiquei espantado com a descrição do corpo, alguns livros que eu li sobre mistério são da escritora Agatha Christie, mas não chega a ter este detalhamento sobre a morte...

    Fique com Deus, senhorita Lígia.
    Um abraço.

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  2. Daniel Savio,

    É um dos mais belos livros que já li onde a morte é estraçalhada como a um corpo restando apenas alma...
    O livro é muito bom e escrito por uma médica.
    Abraços.

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  3. Sem dúvida, um livro fantástico, muito bem concebido.
    Um livro para ser relido muitas vezes.
    Nunca vi relato tão instigante sobre o tema.
    Através dele, pode-se apreender a vida, através da profundidade da morte.
    O livro revela ainda, toda uma perspectiva psicológica do homem ao lidar com a maior das certezas, que é a morte.
    Impossível se deixar levar pela concretude de uma autopsia de um corpo, pois ela vai muito mais além do que se pode imaginar.

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  4. Anônimo,
    Obrigada pela visita e interessante comentário.

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