segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Victor Hugo - O último dia de um condenado à morte


Por que não?
Os homens... são todos
condenados à morte
sem apelação.

"Condenado à morte!
Há cinco semanas que estou vivendo com este pensamento, sempre sozinho com ele, sempre félido com a sua presença, sempre encurvado sob o seu peso!
Outrora, pois parece-me que são anos e não semanas, era um homem como qualquer outro. Cada dia, cada hora, cada minuto trazia uma idéia própria. Meu espírito, jovem e rico, era cheio de fantasias. Divertia-se fazendo-as desfilaem uma atrás da outra, sem ordem nem fim, bordando com inesgotáveis arabescos esse rude e fino tecido da vida. Eram donzelas, esplêndidas capas de bispos, batalhas ganhas, teatros cheios de barulho e de luzes, e mais donzelas e passeios noturnos sob a ampla copa dos castanheiros. Era sempre festa na minha imaginação. Podia pensar no que eu quisesse, era livre.
Agora estou preso. Meu corpo está acorrentado num calabouço, meu espírito está aprisionado numa idéia. Uma horrível, sangrenta, implacável idéia! Só tenho agora um pensamento, uma convicção, uma certeza: condenado à morte!
O que quer que eu faça, ele está sempre lá, este pensamento infernal, qual espectro de chumbo ao meu lado, só e ciumento, afastando qualquer distração, face a face comigo, infleiz, e sacudindo-me com suas duas mãos gélidas quando quero desviar a cabeça ou fechar os olhos. Insinua-se sob todas as formas lá onde meu espírito queria fugir dele, mistura-se como um estribilho horrível a todas as palavras que me são ditas, gruda comigo nas grades hediondas do meu calabouço; obceca-me quando acordado, espia meu sono convulsivo e reaparece nos meus sonhos sob a forma de uma faca."

Ganhei este livro de presente de uma amiga no SKOOB para doação, entre outros. Ao observar melhor a imagem da capa, acabei por associar a imagem da cena de um outro livro, A FERA DE MACABU, livro raro, do jornalista de Campos dos Goitacazes (RJ), Márcio (pesquisar depois), que relata a história de vida de Motta Coqueiro, o último condenado à morte no Brasil e que teve enforcamento em praça pública, na cidade de Macaé. Observar a história na posição dos condenados, um com uma guilhotina no pescoço sabendo-se inocente, outro na posição angustiante e dolorosa espera de ser mutilado em praça pública , de ser privado de seu único bem, de sua própria vida, se consumindo lenta e inexoravelmente, em ritmo obsessivo, martelante dos últimos e penosíssimos pensamentos e dos delirantes fantasmas de uma mente incrédula e aterrorizada.

Pena de morte sendo discutida em claro discurso literário em favor da abolição da pena de morte, publicado no último ano da monarquia dos que Victor Hugo, na idade de 27 anos, tomou posição em defesa dos direitos inalienáveis do homem e, sobretudo, do direito à vida. Hoje inicio esta dolorosa leitura, em que a mutilação de corpos são expostos, onde o condenado, em silêncio, sem direito a fala,  vê-se mutilado publicamente onde muitos gozam a cena, sem alcançá-la visualmente, outros, jogam, leem, conversam enquanto se desenrola a mutilação, cena exposta a público.

Vale observar que na época em que o livro foi publicado, a ideia do livro foi lançada para ser absorvida pelo público, entretanto, o autor já divisava um objetivo maior, ou seja, atingir o senso comum de que não somente aquela mutilação específica, mas colocar o condenado na posição de ator principal de um palco onde teria direito a absorvição definitiva daquela angústia a público, onde não somente um corpo mutilado era exposto, mas a semente lançada, já naquele tempo histórico. Bem, vamos lentamente narrar esta mutilação de corpos a público, lentamente, assim para que o prazer de ver um corpo mutilado, esquartejado, chegue aos olhos de todos, socialmente. Retorno com as partes a medida que o livro for sendo dissecado. Apesar de conter apenas cem páginas, podendo ser leitura rápida, prefiro explorar cada parte deste corpo vivo, lentamente, demoradamente, bem desencaixando cada parte para somente depois de toda sua leitura vê-lo inteiro, por completo.

"A janela dava para um pátio quadrado bastante amplo e ao redor do qual erguiam-se nos quatro lados, como uma muralha, um grande edifício de pedras talhadas de seis andares. Nada mais arruinado, mais nu, mais miserável para os olhos que aquela fachada quádruple esburacada por um sem número de janelas gradeadas às quais estavam grudados, de cima a baixo, uma multidão de rostos magros lívidos, imprensados uns em cima dos outros, como as pedr5as de uma parede, e todos por assim dizer emoldurados nos entrecruzamentos das grades de ferro. Eram os prisioneiros, espectadores da cerimônia esperando o dia deles serem os atores. Pareciam almas penadas nos respiradouros do purgatório que dão para o inferno.
Todos olhavam em silêncio o pátio ainda vazio. Estavam esperando. Entre essas figuras apagadas e sombrias, brilhavam aqui e ali alguns olhos penetrantes e vivos como línguas de fogo."

O condenado ainda não rumou a mutilação pública, apenas observa o triste cenário a que está inserido.

"Tocou meio-dia. Um grande portão, escondido num nicho, abriu-se de repente. Uma charrete, escoltada por umas espécies de soldados sujos e envergonhados, de uniforme azul com dragonas vermelhas e bandoleiras amarelas, entrou pesadamente no pátio com o barulho de sucata. Era os forçados e as correntes.
No mesmo instante, como se o barulho despertasse todo o barulho da prisão, os espectadores das janelas, até então silenciosos e imóveis, explodiram em gritos de alegria, músicas, ameaças, imprecações misturadas a gargalhadas pungentes de ouvir. Pareciam máscaras de demônios. Cada rosto mostrou uma careta, todos os punhos saíram das grades, todas as vozes uivaram, todos os olhos flamejaram e fiquei apavorado ao ver tantas centelhas reaparecerem nessas cinzas.

Nota do prefácio: "Existem duas maneiras de constatar a existência deste livro. Ou bem houve, de fato, uma pilha de folhas amareladas e desiguais sobre as quais foram achadas, registradas uma a uma, as últimas reflexões de um pobretão; ou bem houve um homem, um sonhador ocupado em observar a natureza em proveito da arte, um filósofo, um poeta, talvez, que fez dessa idéia sua fantasia, que a tomou ou, melhor dizendo, foi tomado por ela, e que só conseguiu livrar-se dela jogando-a num livro.
Das duas explicações, o leitor escolherá a que melhor lhe convier."

O livro vem declarar e repetir que está pleiteando, em nome de todos os possíveis réus, inocentes ou culpados, perante todas as Cortes, todos os pretórios, todos os júris, todas as injustiças. O presente livro está endereçado a quem quer que julgue. E, para que a defesa seja tão abrangente quanto a causa, foi-lhe preciso - e é por esta razão qu 'O último dia de um condenado' é assim feito - podar onde quer que fosse necessário o seu objeto, o contingente, o acidental, o peculiar, o especial, o relativo, o modificável, o episódio, a anedota, o acontecimento, o nome próprio, e limitar-se a defesa da causa de um condenado qualquer, executado num dia qualquer, por um crime qualquer. Feliz se, sme outra ferramenta que não o pensamento, conseguiu vasculhar o bastante para fazer um coração sangrar sob aes triplex do magistrado! Feliz, se ele fez com que os que se acreditam justos tenham se tornado piedosos! Feliz se, de tanto fustigar o juiz, conseguiu vez por outra, encontrar nele um homem!

"Estava passando pela Praça de Grève, de carro, um dia, por volta das onze da manhã. De repente, o carro parou.
havia muita gente na praça e no cais, mulhres, homens, crianças, estavam de pé no parapeito. Acima das cabeças, via-se uma espécie de palanque de madeira vermelha que três homens estavam montando.
Um condenado ia ser executado naquele mesmo dia e estavam construindo a máquina.
Virei a cabeça antes de ser visto. Ao lado do carro, havia uma mulher que dizia para uma criança:
"Olhe, está vendo? A faca não está descendo direito, vão passar um pedaço de vela nos montantes para facilitar."
É provavelmente o que eles estão fazendo agora. Onze horas acabam de tocar. Devem estar passando vela nos montantes.
Desta vez, infeliz, não virarei a cabeça.

Há três anos, quando da publicação deste livro, alguns pensaram que valia a pena contestar que a idéia fosse do autor. Uns imaginaram um livro inglês; outros, um livro americano. Estranha mania essa de procurar a mil léguas as origens das coisas, e querer que a água do regato que lava sua rua venha do rio Nilo! Infelizmente não temos aqui nenhum livro inglês, nem americano, nem chinês. O autor tirou a idéia de 'O Último Dia de um Condenado", não de um livro, não tendo o costume de ir buscar suas idéias tão longe, mas sim lá onde todos podemos pegá-la, onde talvez a tenhamos pego (pois quem não fez ou sonhou na própria mente "O Último Dia de um Condenado'?), simpelsmente na praça pública, na praça de Grève. Foi aí que um dia, passando por lá, ele apanhou essa idéia fatal, que jazia numa poça de sangue debaixo dos cotos vermelhos da guilhotina.

Uma comédia a propósito de uma tragédia, isto é 'O último dia de um condenado à morte'.

Título original: Le dernier jour d´un condamné
Tradução: Annie Paulette Marie Cambê
Revisão: Taísa Lucchesi

Ilustração da capa: Aligi Sassu, Fucilazione nelle Asturie, 1935
Design: Alessandro Conti

3 comentários:

  1. A COMBINAÇÃO DE CORES DE TEU BLOG ESTÁ HORROROSA. DIFICULTANDO EM MUITO A LEITURA.
    gilrikardo@pop.com.br

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  2. Anônimo,
    Agradeço a visita e comentário
    gentil.

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