sábado, 9 de janeiro de 2010

Carlos Drummond de Andrade / Passagem da noite



"É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras;
que a terra prossegue seu giro, e o tempo
não murchou, não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!"


(ANDRADE, Carlos Drummond de, pág. 48)

Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987 - Antologia poética (organizada pelo autor) / Carlos Drummond de Andrade: prefácio, Marco Lucchesi. - 63a. ed. - Rio de Janeiro:Record, 2009.

Imagem digital reeditada: Lígia Guedes - RJ - Brasil

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