sábado, 9 de janeiro de 2010

Carlos Drummond de Andrade/Antologia Poética


"Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação."


(ANDRADE, Carlos Drummond de, pág. 182)

Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987 - Antologia poética (organizada pelo autor) / Carlos Drummond de Andrade: prefácio, Marco Lucchesi. - 63a. ed. - Rio de Janeiro:Record, 2009.
Imagem digital reeditada: Lígia Guedes

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