quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Carlos Drummond de Andrade


A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


"Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!"

Sumário: Considerações do poema, Procura da poesia, A flor e a náusea, Carrego comigo, Anoitecer, O medo, Nosso tmepo, Passagem do ano, Passagem da noite, Uma hora e mais outra, Nos áureos tempos, Rola mundo, Áporo, Ontem, Fragilidade, O poeta escolhe seu túmulo, Vida menor, Campo, chinês e sono, Episódio, Nova canção do exílio, Economia dos mares terrestres, Equívoco, Movimento da espada, Assalto, Anúncio da ros, Edifício São Borja, O mito, Resíduo, Caso do vestido, O elefante, Morte do leiteiro, Noite na repartição, Morte no avião, Desfile, Consolo na praia, Retrato de família, Interpetação de dezembro, Como um presente, Rua da madrugada, Idade madura, Versos à boca da noite, No país dos Andrades, Notícias, América, Cidade prevista, Carta a Stalingrado, Tlegrama de Moscou, Mas viveremos, Visão, Com o russo em Berlim, Indicações, Onde há pouco falávamos, Os últimos dias, Mário de Andrade desde aos infernos, Canto ao homem do povo Charlie Chaplin

Andrade, Carlos Drummond de , 1902-1987 - A rosa do povo / Carlos Drummond de Andrade; prefácio de Affonso Romano de Sant´Anna. - 42. ed. - Rio de Janeiro: Record, 2009;

Óleo sobre tela: Lis G.

3 comentários:

  1. Obrigada pelo comentário Lígia!
    Passarei sempre pelo seu blogger com certeza.
    Sobre o desenho,
    Precisava de algo expressivo,
    encontrei no olhar de sua filha.
    Através da obra de um artista : ]

    P.S adorei a poesia de hoje

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  2. Lutar com palavras é a luta mais vã. Enquanto lutamos mal rompe a manhã. - Carlos Drummond de Andrade

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  3. Acabei lembrando um pouco do cenário politico no começo do poema...

    Mas se é o tempo certo, nós temos o dever de fazer que seja o tempo adequador.

    Fique com Deus, menina Lígia.
    Um abraço.

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