Toda luz que não podemos ver - Anthony Doerr |
NA ESTANTE, por Fernanda Pompermayer, Cidade Nova, Junho 2016 - n. 6
A história de uma garota cega, filha do chaveiro do Museu Nacional de História Natural de Paris, em meio à Segunda Guerra, esconde e revela uma trama: Toda luz que não podemos ver. Assim como em A menina que roubava livros, de Markus Zusak (também da Editora Intrínseca), o livro enxerga o grande conflito mundial a partir do olhar da população comum, que viveu os seus dramas na França ocupada pelas tropas de Hitler e na própria Alemanha. Marie-Laure ficou cega aos seis anos de idade. Para que ela tivesse um mínimo de mobilidade e de orientação espacial, o pai constrói uma maquete do bairro onde moram.
Aprende a ler em braile e, apesar dos parcos recursos do pai, ele presenteia a amada filha com Vinte mil léguas submarinas, de Júlio Verne.
A menina devora o livro, o relê, lê pela terceira vez. A ausência da visão aumenta ainda mais sua capacidade de fantasiar e de sonhar.
Assim, os acontecimentos reais encontram na sua imaginação um paralelo com o Capitão Nemo e suas aventuras náuticas.
Com a chegada dos nazistas a Paris, pai e filha fogem para a cidade costeira de Saint-Malo, onde esperam encontrar abrigo na casa de um parente.
Enquanto isso, na Alemanha...o jovem órfão Werner, pouco mais de uma criança, vive o temor de uma convocação para a frente de batalha.
Na pequena cidade carvoeira onde mora, "vagões de carvão rangem na escuridão úmida. Máquinas ressoam à distância: pistões martelando, esteiras girando. Suavemente. Insanamente".
Aficionado por tecnologia, Werner torna-se um excelente técnico autodidata. Recrutado pelo exército alemão, ele será um soldado importante para desbaratar a rede de transmissões clandestinas dos Aliados. Mas o garoto de 15 anos é assaltado por questionamentos que não querem calar. Pureza racial, pureza política (...). Na calada da noite Werner medita: a vida não é uma espécie de corrupção? Uma criança nasce e o mundo se apossa dela. Arrancando coisas dela, alojando coisas nela. Cada porção de comida, cada partícula de luz entrando no olho - o corpo nunca pode ser puro. Mas é nisso que o comandante insiste, o motivo pelo qual o Reich mede o nariz de cada um deles, avalia a cor de seus cabelos.
Durante a ocupação de Saint-Malo, as histórias de Werner e de Marie-Laure se cruzam.
Em agosto de 1944, a histórica cidade murada de Saint-Malo, a joia mais esplendorosa da Costa da Esmeralda, na Bretanha, foi quase totalmente destruída pelo fogo... Das 865 construções no interior das muralhas, apenas 182 permaneceram de pé, e todas sofreram algum tipo de dano (da Epígrafe).
Lá fora, pela janela, ouve-se o ronco de um caminhão ganhando vida.
Passam gaivotas, zurrando como asnos, e à distância as armas voltam a estourar, e o ronco do caminhão diminui, e Marie-Laure tenta se concentrar e reler um capítulo anterior do livro: fazer os pontos em relevo se tansformarem em letras, as letras em palavras, as palavras em um mundo.
O barulho aterrador alterna-se com longos silêncios, não menos assustadores. Marie-Laure reflete:
O silêncio é fruto da Ocupação; está suspenso nos galhos, jorra das calhas. Madame Guiboux, mãe do sapateiro, saiu da cidade. Assim como a idosa madame Blanchard. Tantas janelas estão às escuras. É como se a cidade tivesse se tornado uma biblioteca de livros escritos em uma língua desconhecida, as casas, em grandes prateleiras com volumes inteligíveis, todas as luminárias apagadas.
Longe de ser um romance açucarado, essa obra de Doerr é um retrato realista. É uma história que poderia muito bem ter acontecido.
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