segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

O estigma de uma geração (por Gilberto Mendonça Teles)

Gilberto Mendonça Teles
Vinte anos depois da Semana da Arte Moderna, a poesia brasileira já havia conquistado o seu estatuto de modernidade.
Foi o tempo necessário para que o "espírito moderno" deixasse o litoral (Rio e São Paulo) e se expandisse pelo interior, ganhando as capitais dos estudos e indo aos poucos penetrando na mentalidade dos leitores, dos professores e estudiosos de poesia. Vinte anos depois, portanto, muita coisa já havia mudado na pregação modernista. Não era mais necessária a poesia-tese, como na Paulicea Desvairada. A ideologia programática dos manifestos ainda não se havia esgotado na prática poética. Certas técnicas de retórica e linguagem, desprezadas e combatidas inicialmente, porque repetidas e quase exauridas pelo modelo parnasiano, começam a ser reexaminadas e passam a adquirir novas funções diante do alargamento das concepções poéticas do século XX. Mas, infelizmente, a preguiça mental de professores e críticos já havia também assimilado os "modelos" postos em voga de que o Modernismo havia abolido a métrica, acabado com a rima, com o soneto, e mudado totalmente a construção dos poemas. A verdade (e isto está patente na obra  dos poetas da época) é que nem a métrica desapareceu, nem a rima, nem o soneto, mas tudo isso recebia tratamento novo de que os "estudiosos" não se deram conta, porque não examinavam diretamente as obras.


Por essa época, a sociedade brasileira, já sufocada por uma ditadura que, talvez por influência modernista, se intitulava o "Estado Novo", se defronta com os problemas ideológicos decorrentes da Segunda Guerra Mundial. E um sentido nacionalista, de participação político-social, passa a dominar os intelectuais, poetas e ficcionistas, e, logo a seguir, constitui uma das exigências do pensamento crítico. A produção literária que não se tornasse ostensivamente participante (e entendia-se a participação num sentido quase inteiramente extraliterário) passava a ser malvista, independentemente das suas qualidades estéticas, em que o poeta se engajava cada vez mais nas potencialidades da linguagem.

As duas formas de participação - pelo tema e pela linguagem - faziam parte da dialética modernista de 22 e se desenvolveram na medida em que os poetas foram superando os aspectos programáticos de implantação do "espírito novo". Assim, a primeira geração (de 1922 a 1930) foi realmente revolucionária na imposição de temas novos (de conteúdos nacionais) e na seleção de uma linguagem mais adequada à expressão desses temas. Recorreram para isso, como é o caso de Mário de Andrade, que exerceu bastante influência sobre os demais, a palavras do vocabulário cotidiano e a construções sintáticas que lhes permitiram (e com certa razão) repor em evidência a teoria romântica de uma "língua brasileira", coisa que os nossos gramáticos, filólogos e linguistas não tem podido desapaixonadamente estudar: é a paixão quase idiota por Portugal.

A segunda geração, que começou a publicar a partir de 1930, procurou inicialmente consolidar na prática as conquistas teóricas da primeira. O espírito da década é ainda o de implantação do Modernismo, que agora se alastrava pelas capitais estaduais, configurando os pontos cardeais da modernidade brasileira. Mas, por força do talento individual de poetas como Drummond, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes e Cecília Meireles, além dos que vinham da primeira geração (Bandeira, Mário e Cassiano, dentre outros), os temas e as formas da retórica modernista começam a ser selecionados e aprofundados, abrindo-se, ainda que lentamente, para certos aspectos universais da poesia que o radicalismo da primeira hora havia abandonado. A participação temática foi inicialmente regional, como em Brejo das almas, de Drummond; mas adquiriu sentido universal em Sentimento do mundo, do mesmo poeta. Assim também a participação formal, pela linguagem; mas à medida que os temas se foram universalizando, a retórica do primeiro tempo modernista foi-se mostrando insuficiente e tornou-se redescobrir e revitalizar os instrumentos tradicionais da poesia de todos os tempos. Basta acompanhar a transformação do discurso poético de Jorge de lima para se dar conta de um processo que foi mais ou menos comum a esta geração, repartida entre a repetição do modelo de 22 e a criação de sua própria dicção poética.


É entretanto a geração seguinte, a que se inicia na década de 40, 
que vai levar mais longe o projeto modernista.


Poetas que vêm da primeira e da segunda gerações, que entram agora nos seus 40 ou 50 anos e adquirem a competência e o desempenho dos grandes manipuladores da linguagem poética, encontram na década de 40 um grupo de novos que aparentemente os contestam, mas que, no fundo, estão levando adiante alguns dos postulados modernistas, entre os quais o direito à livre pesquisa e à liberdade estética do poema. É aí que entram em cena petas como Domingos Carvalho da Silva, Péricles Eugênio da Silva Ramos, João Cabral de Melo Neto, Lêdo Ivo e, mais tarde, Darcy Damasceno e outros, ligados mais ou menos por um ideal estético-literário já hoje historicamente definido como o da Geração de 45.

Até há pouco, a crítica, que sempre estudou mal a poesia e a função histórica deste grupo, se repetia, teimando em dizer "a chamada Geração de 45". Alguém um dia escreveu assim, em dúvida se a nova geração de poetas pertencia ainda ao Modernismo ou se já se desvinculara dele. A partir daí, todos os críticos, maiores e menores, começaram a repetir o sintagma que passou a ter conotação depreciativa e, num certo momento, adquiriu categoria de slogan político-literário. Para os críticos que cobravam o engajamento temático, a "chamada Geração de 45" era absenteísta e estava fora da realidade brasileira. E nessa canoa furada embarcaram quase todos os "estudiosos" da nova poesia, revelando ao mesmo tempo, à medida que iam julgando esses poetas, um grande desconhecimento das técnicas e da função social da poesia.

A observação, tanto quanto possível objetiva, do farto material recolhido (da crítica, das revistas e jornais e, por certo, de toda a poesia do Modernismo até o final da década de 70) nos mostra, em primeiro lugar, que a Geração de 45 teve de lutar contra a "ditadura" de certos velhos do Modernismo, como Oswald de Andrade, que, já no fim da vida, via contestada a sua autopropalada condição de líder da modernidade brasileira; e, em segundo lugar, que os novos tiveram de se curvar diante dos cultores da poesia concreta que, saindo da própria Geração de 45 e tendo com ela afinidades estéticas com relação à linguagem, iam reabilitar certos aspectos da poesia epigramática de Oswald de Andrade e, para se impor, combatiam violentamente os principais poetas de 45. Era, pois, uma situação de empoderamento que o contexto político brasileiro ajudou a acentuar, mas da qual os pirncipais poetas foram aos poucos emergindo por continuidade e por força de um talento poético que se vai impondo, inclusive entre os novíssimos.

A poesia da Geração de 45 situa-se perfeitamente dentro do sentido de transformação do discurso poético do Modernismo. Não continuou as tendências modernistas, copiando-as, exaurindo-as ou repetindo-as arquetipicamente; continuou, mas no sentido de que soube imprimir à educação modernista uma nova dicção, pressentida por alguns petas e deixada à margem, uma vez que outros aspectos adquiriam na época prioridade no grande esforço inicial de impor novas formas de pensamento e de fruição estética, a partir de 1922.

Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) foi o primeiro grande crítico do Modernismo a perceber a mudança da poesia em 1945. O seu artigo "O Neo-modernismo", publicado na revista Época, do Rio de Janeiro, em Julho de 1947, chamou imediatamente a atenção para os novos que, surpreendidos pela força da "adesão", começaram simultaneamente a citá-lo e a rejeitá-lo, procurando dizer que antes dele já o paulista Sérgio Milliet havia escrito sobre os novos. Escreveu, sim; mas sem a força crítica do artigo de Tristão de Athayde, que passou a fazer parte do livro Quadro sintético da literatura brasileira, editado em 1956. Mostrando a transformação modernista depois de 20 anos de luta e imposição de linguagem, Tristão de Athayde assinala o aparecimento de uma geração, a que deu o nome de Neomodernismo, e cujo início se confunde com a terceira fase do Modernismo. Mas não se trata, dizia, "de uma nova geração dentro do Modernismo, e sim de uma nova geração depois do modernismo, ainda que não contra ele". E logo a seguir aponta os traços que lhe parecem característicos da poesia dessa geração, dizendo que não existe uma oposição entre o Modernismo e esse neomodernismo,  mas uma transição indefinida. A diferença entre os dois movimentos é de natureza e não de tempo, isto é, em 45 não se trata de afirmar o presente contra o passado. Segundo Tristão de Athayde, a nova geração está sob o signo da Disciplina e da Liberdade; daí o primado do Verso sobre o Poema e a preocupação em restaurar os laços com o Público (leia-se público tradicional); e a ausência de um nome coletivo, um líder assim como Mário de Andrade. Finalmente, diz que os neomodernistas estão muito mais pelos valores eternos que pelos modernos, contrariamente ao Modernismo: "Os neomodernistas são, em geral, mais profundos que os modernos de 1920." E conclui, falando da poesia: "Há, entre eles, diferenciações consideráveis sem dúvida. Não constituem um grupo, nem regional, nem geracional, nem mesmo estético. São de valor qualitativo diverso, que aqui não cabe especificar, ou talvez seja cedo para o fazer. Mas podem cronologicamente ser considerados como neomodernistas, e o primado do verso nos dá uma relativa unidade."


Para que se possa avaliar bem a contribuição literária dessa geração de escritores voltados quase inteiramente para a poesia, é preciso situá-la (ou alguma de suas características) em face dos poetas modernistas de 1922, de 1930 e de 1960, bem como em face de outras séries não-literárias, artísticas e científicas da cultura brasileira da segunda metade desse século.


Mas é preciso também um saneamento de problemas terminológicos, onde entram em jogo palavras como geração, neomodernismo, antimodernismo, neoparnasianismo, novos, concretismo, novíssimos, enfim, termos que foram usados contra ou a favor dos poetas de 45. Usados tanto pela crítica de "fora" como pela de dentro da própria geração. Noutras palavras, é preciso acompanhar o pensamento da crítica brasileira em face da transformação de cada poeta; e registrar como o próprio pensamento dos líderes de 45 se foi também modificando, ajustando-se às circunstâncias, precisamente os seus conceitos e até omitindo cuidadosamente premissas dos primeiros momentos da geração. Em determinado momento, esta palavra serviu para estigmatizar os poetas de 45, mas foi também o signo de união em torno de objetivos poéticos que se tornaram mais ou menos comuns e começaram a definir a produção de novos e velhos no fim da década de 40.

A principal reação contra 45 vem do início da década de 60, quando se intensificaram os problemas de engajamento político-literário, e a poesia concreta (e outras vanguardas) procurou tomar conta do poder literário. De lá para cá, os poetas de 45 continuaram as suas obras, fizeram antologias de grupo, ensaiaram alguns movimentos culturais, mas as suas obras foram sempre olhadas de soslaio e até com menosprezo. A nossa crítica tem achado fácil desprezar e passar de lado que enfrentar com dignidade o colóquio com a obra desses poetas. Muitos críticos ficam à espera de que alguém fale primeiro, pois isso é mais "seguro", e não perturba o ritmo das convenções literárias...

Aliás, a respeito das convenções, é bom citar em conclusão o estudo de Arnold Hauser, em Teoria da arte, quando ele diz que "todo artista fala a linguagem dos seus predecessores, e algum tempo decorre antes que comece a falar com a própria voz". Para ele, "uma idéia artística nova só pode se formar se existir tradição e uma convenção em que possa encadear-se", Ora, a poesia da Geração de 45 partiu da experiência dos poetas modernistas, de 1922 e de 1930, dentro portanto das convenções impostas pelo sentido de modernidade que lançou o Brasil no ritmo do século XX. Sua poesia tem sido o resultado de um emparedamento entre a continuidade e a renovação da tradição literária, entre a renovação de um sentimento estético mais ou menos generalizado e a prudência para não desvairar na direção dos modelos vanguardistas. Uma poesia de equilíbrio que vai deixando, para bem e para mal, as suas marcas na mais nova poesia brasileira e, na crítica apressada, o sentido um tanto ambíguo com que tentaram estigmatizar a poesia dessa geração.

Gilberto Mendonça Teles é poeta, ensaísta e professor 
de Literatura Brasileira na PUC - RJ


Bibliografia para estudo:

IVO, Lêdo. Epitáfio do Modernismo. Ed. Orfeu, Rio de Janeiro, 1967.
LIMA, Alceu Amoroso (Tristão de Athayde). "O neomodernismo". Revista Época, Rio de Janeiro, 1947.
LIMA, Alceu Amoroso. Quadro intético da literatura brasileira. Ed. Agir, Rio de Janeiro, 1959.
MELO NETO, João Cabral de. "A Geração de 45". Série de quatro artigos publicados no Diário Carioca, Rio de Janeiro, 1952.
RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. "Geração de 45: alguns artigos e um prefácio". Correio Paulistano, São Paulo, 1953.
RICARDO, Cassiano. "Renovação do essencial no fenômeno lírico". Correio Paulistano, São Paulo, 1956.
SILVA, Domingos Carvalho da. "Há uma nova poesia no Brasil", manifesto lido no I Congresso Paulista de Poesia e publicado na Revista Brasileira de Poesia, n. 3, agosto de 1948.
TELES, Gilberto Mendonça. 45. Arte de armar. Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1977.
____, Vanguarda européia e o Modernismo brasileiro. Ed. Vozes, Petrópolis, 1992.


Fonte: 100 Anos de Poesia - Um panorama da poesia brasileira no século XX - Volume I



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