sábado, 7 de janeiro de 2012

Barco a seco - Rubens Figueiredo

Barco a seco: romance / Rubens Figueiredo - São Paulo: Companhia das Letras: 2001

"Existe um limite para tudo. Não é medo, não é convenção. Pelo menos, não é só isso. Marcas invisíveis deslizam no chão, atravessam nosso caminho. Uma fronteira, um litoral, nem saemos em que nossos pés tropeçam, nem imaginamos em que parede nosso ombro esbarra. Só um louco pode supor que o céu tem o tamanho dos seus olhos. Só uma criança pode acreditar que o mundo inteiro cabe no prato da sua fome.


Assim inicia a história de um órfão criado numa família pobre que não é a sua, que se beneficia de circunstâncias que a vida lhe apresenta para melhorar de vida. Especializa-se num pintor, já desaparecido, cujos quadros, feitos sobre pedaços de barcos e tapas de caixa de charuto, retratam o mar de forma obsessiva. O personagem passa a reconstituir a face genuína do pintor, aproveitando o acaso e olhar arguto, habituado a perceber toda abertura para a sobrevivência, conduzindo-o à esfera do comércio de pinturas, a uma galeria de arte onde a conveniência e o interesse de alguns fazem do jovem um perito se especializando num pintor obscuro. Igualmente fascinado pelo mar, resiste ao impulso que ameaça fundir definitivamente sua imagem à do pintor.

"Assim, mesmo depois de ser sacudido, me encolhi e tentei ficar bem quieto o fundo, esperando o mais que pude. Quando afinal vim à tona, tossi, cuspi, respirei com toda a força da garganta. Senti que tinha areia entranhada até o vão embaixo das unhas, e então me veio à mente o pintor Emílio Vega. Reconheci o absurdo disso também. Acusei o teatro patético que meu pensamento encenava para mim mesmo. Ainda assim, não consegui conter aquele surto sentimental, tão fora de propósito, que aos meus olhos me humilhava até a raiz, como se eu pedisse arrego, como se eu estivesse pronto para morrer dali a pouco."


O romance tem um prosa caudalosa e reflexiva onde conflitos são postos à clara pelo narrador através do personagem central. Em cena a experiência de um passado que insiste em manter abertos seus traumas sem render-se à realidade do presente. Seu centro, o fascínio do mar cuja presença, à margem da cidade, parece contestar a solidez da terra firme. Excelente narrativa que vai aos poucos desvendando a história daqueles que necessitam utilizar a arte para vencer a sobrevivência diária.

"Pior ainda, passei a recordar com estranheza, quase com uma ponta de escândalo, como eu vivera até pouco tempo, até um ano, um ano e meio antes. Isso me desorientava por alguns momentos, pois eu sempre fizera questão de me manter familiarizado com minhas maiores dificuldades, mesmo que já estivessem extintas.Lembrar aquele tempo, evocar as semanas mais árduas constituía um dever, uma reverência que eu cumpria à risca para aplacar uma divindade feroz."

Rubens Figueiredo nasceu em 1956, no Rio de Janeiro, cidade onde mora. Formado em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professor de português e tradutor de obras de Tchekhov, Turguêniev e Tóstói, entres outras. É autor de sete livros, dos quais O livro dos lobos (contos, 1994), As palavras secretas (conto, 1998, prêmio Jabuti) e Contos de Pedro (contos, 2006) e o recnete Passageiro do fim do dia (romance ,2010). O livro Barco a seco recebeu o prêmio Jabuti de 2002.


4 comentários:

  1. Lígia, muito interessante a resenha que publicas sobre o livro do Rubens. Parece-me um romance psicológico onde o personagem utilizan o "jeitinho brasileiro" para sobreviver. Ficam aparentes os conflitos familiares e pessoais e o fascínio pelo mar.
    Parabéns pela dica.
    Paulo Bettanin

    ResponderExcluir
  2. Paulo Bettanin,
    Interessantíssimo livro, uma linguagem maravilhosa. Um dos melhores que já li nos últimos tempos.
    Obrigada!

    ResponderExcluir
  3. Barros,
    Excelente, tem momentos que o livro aflora a lembrança de 'Fome', de Knut Hamsun.
    Beijos.

    ResponderExcluir

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails