Fome - Knut Hamsun |
"Naquele tempo, com a barriga na miséria, eu vagava pelas ruas de Cristiânia, cidade singular, que deixa marca nas pessoas..."
"Fome", belíssimo romance universal, tradução de Carlos Drummond de Andrade, prende a atenção do leitor não somente pelo fundo histórico da narrativa, dos tormentos de um escritor vagabundo e famélico que vaga pelas ruas atormentado com um toco de lápis, como o qual escreve crônicas para os jornais, dependendo disso para não morrer:
"Durante todo o verão vagueei pelos cemitérios ou no Parque do Castelo: aí me abancava e escrevia artigos para os jornais, colunas e mais colunas, sobre as coisas mais diversas: invenções estranhas, maluquices, fantasias de cérebro agitado. Em desepero, escolhia frequentemente os assuntos menos atuais, que me custavam longas horas de esforço e nunca eram aprovados. Acabado o artigo, atacava outro, e raramente me desencorajava pelo "não" dos redatores-chefes, dizia sempre a mim mesmo que acabaria vencendo. E, de fato, se estava de veia e o artigo saía bem feito, acontecia-me receber cinco coroas pelo trabalho de uma tarde."
Comovente, o livro descreve de forma tragicômica as agruras de um escritor miserável e vagabundo e todo um mundo de excluídos em labirintos pelas ruas da antiga Cristiania (hoje Oslo, capital da Noruega). Enquanto a vida pulsa, o personagem reflete de maneira profunda sobre o sentido da vida, sobre Deus, sobre o estar no mundo.
"A idéia de Deus voltou a preocupar-me. Era absolutamente injustificável de sua parte interpor-se toda vez que eu procurava um emprego, e estragar tudo, quando minha aspiração se resumia em ganhar o pão cotidiano. Eu observara muito bem que, se jejuasse durante um período bastante longo, era como se os miolos me escorresem suavemente do cérebro, esvaziando-o. A cabeça tornava-se leve, como que ausente; já não lhe sentia o peso sobre os ombros, e, se olhava para alguém, tinha a sensação de que meus olhos estavam fixos, arregalados.
Sentado no banco, e absorto nessas reflexões, sentia-me cada vez mais azedo com relação a Deus, por causa de suas insistentes provocações. Se ele supunha chamar-me para junto de si e aperfeiçoar-me pelo martírio, acumulando mortificações em meu caminho, estava um tanto enganado, podia garantir-lhe. levantei os olhos para o Altíssimo, quase chorando de orgulho desafiador, e disse-lhe essas coisas uma vez por todas, mentalmente."
Knut Hamsun, autor, foi estivador, lenhador, marinheiro, sapateiro, condutor de bonde, jornalista, cuidador de frangos. Viveu nos Estados Unidos, vagou pela Europa, e esta sua vida errante e de sofrimentos moldou-lhe o caráter, dando-lhe inspiração para criar seus vibrantes personagens. O escritor atormentado de "Fome" é ele mesmo. Controvertido, excêntrico, polêmico, avassalador e monumental em sua obra cheia de sangue, vida e furor. Knut Hamsun recebeu o Nobel de Literatura de 1920 e curiosamente perdeu o cheque no retorno do prêmio. Só ele! Hamsun nos deixou uma obra paradoxalmente plena de amarguras, sonhos e descrenças, mas também de alegrias, otimismo e esperanças. O personagem de "Fome" nos desperta pena, mas também admiração e até inveja. "O romancista universal da dor serena".
"À medida que as horas passavam, eu me via cada vez mais carcomido física e moralmente, e deixava-me levar à prática de ações cada vez menos honestas."
Ótima resenha, Lígia. Sinceramente deu água na boca. Gostaria muito de ler esta obra. Já li muito a respeito dela, mas ainda não a tive em mãos. E essa sua resenha temperou ainda mais minha fome de lê-la.
ResponderExcluirAbraços.
Muito boa resenha. Deu vontade de ler. Já ouvi falar bem de sua obra, mas sempre tive com o pé atrás por sua posição pro-nazista.
ResponderExcluirInteressante o livro, mas me tocou mais a parte de "desafiar" Deus, pois mesmo que não notemos isto, acabamos sempre questionando os designeos de Dele...
ResponderExcluirFique com Deus, senhorita Lígia.
Um abraço.
Alex,
ResponderExcluirNem só de pão vive o homem...rsrs
Bom apetite, muito bom!
Barros,
ResponderExcluir"Em 1947, foi julgado e condenado por suas idéias. Seus livros pararam de vender quando, a respeito da morte de Hitler, escreveu: "Ele era um guerreiro, um guerreiro pela humanidade e um profeta da verdade e da justiça para todas as nações". Dois anos depois, já com 90 anos, escreveu um livro defendendo suas opções políticas - foi um bestseller."
Da literatura quanto da vida, procuro extrair o melhor. "O mal por si só se desfaz".
Humano, enfim.
Beijos!
Daniel Savio,
ResponderExcluirQuanto mais desafiamos a Deus, mais nos conhecemos e isto de certa forma é positivo.
Fique com Deus!
Cheguei um pouco atrasado nos comentários, mas sou mais um que gostou muito da postagem, literatura pura.
ResponderExcluirCaro Kovacs,
ResponderExcluirPuríssima!
Viciante como tuas resenhas...
Adoro Knut e esse classico da literatura que li na minha mocidade, mas que ensinou-me muita coisa em termos de narrativa e de vida. Até hoje ainda fico impressionado com a descrição de um sofrimento.
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